Fernanda Lira, vocalista e baixista da Crypta, participou recentemente do podcast ?MetalKS, onde ela falou sobre a luta da mulher no mundo do metal, e como ela lida com diversas situações mesmo após tantos anos já no meio. Ela diz:
“Quanto ao lance de ser mulher, é uma bandeira que eu carrego com muito orgulho, né? Muito orgulho. Eu sou feminista, assumidamente feminista, e eu consigo hoje ver a importância não só da Crypta, mas de todos, da própria Nervosa, de várias outras mulheres, de todas as mulheres que estão aí tocando em bandas. Eu entendo a importância que existe nisso porque muita gente me pergunta: ‘Mas você se incomoda com o fato de as pessoas enfatizarem que são quatro mulheres tocando, né? Sempre trazer esse labelzinho ali, né? All female death metal, female fronted.’ Antes eu me incomodava com isso, né? Antes era uma coisa que, tipo, somos todos iguais aqui, mas a verdade é que não somos, né? Ainda falta uma caminhada ali. Então hoje eu tenho muito orgulho e é uma… é um label, caramba, não é label que eu quero… quero falar palavra em português… é uma classificação. Soou meio… mas não foi desse lugar. Porque eu tô tentando, tô tentando… essa classificação. Eu queria… hoje é uma classificação que eu carrego com muito orgulho. É uma bandeira que eu carrego com muito orgulho, porque só nós mulheres dentro do metal sabemos as dores e os prazeres de ser uma banda só de mulher dentro do metal. Não é fácil. A gente passa… a gente luta batalhas muito específicas por sermos mulheres que não deveriam ser lutadas, né?
Então, assim, banda só de mina, banda só de mina. Eu levanto essa bandeira hoje porque eu sei que ser uma banda só de mina, para chegar ali, temos que passar por coisas muito específicas que só bandas só de mina passam. Como, por exemplo, ser bloqueada de entrar no próprio camarim, que acontece pelo menos uma vez por turnê, porque acham que a gente é grupie, não está com a banda. E não é… a… isso, não esperava de verdade. Tem que abrir o Google e mostrar: ‘Ó, sou eu, sou eu.’ Então tá vendo aqui, ó? O tempo todo, uma vez por turnê. Isso acontece uma vez por turnê. Faz 10 anos, pô. Tô cansada já. Vamos aprender que mulher topa… ela vai andar com uma foto dela do Google, a foto do Wikipédia, né? Do metal.
A gente passa por batalhas muito específicas. Eu vou falar sobre algumas aqui. Melhorou muito. Eu tenho muito orgulho da cena metal, porque, apesar do conservadorismo que anda muito forte na cena, a gente ainda tem uma veia progressista, que era a base do metal um dia. Foi, e eles não entendem que essa veia progressista tem entendido que tá tudo bem mulher tocar metal, né? Então as coisas melhoraram muito. A cena tá cada vez mais aberta, mais mulheres cada vez mais ocupando espaços não só em cima do palco, mas nos podcasts, na produção, na imprensa, no público, na parte técnica. Então a mulherada está ocupando esses espaços. E eu te digo que eu comecei com a Nervosa em 2011. Não era assim, né? Já tinha um avanço por conta das que lutaram antes de nós, né? As Valhalla e tudo mais. Mas ainda era muito, muito mais restrito, muito mais rígido. Hoje já tá bem melhor, né? A gente já foi aos trancos e barrancos, abrindo ali o caminho, o facão na selva, assim que eu me sinto. Mas passamos por muitas coisas, né? No começo eu ouvia muito que a gente só conseguia show porque a gente dava para o produtor, né? Então, assim, esse tipo de coisa eu ouvia muito. E coisas como: ‘Elas só são modelos.’ E, tipo, aquelas bandas que por trás assim é uma outra banda que toca. Eu falei: ‘Pô, estão me achando modelo porque tá bonita? Além de bonita, toca bem, olha aí.’ Então, esse tipo de coisa, que a gente não gravava os próprios discos, os produtores que gravam. Meu, tudo quanto é coisa para tentar descreditar a gente acontecia. E aquela sensação de subir no palco e ter que provar isso era muito ruim. Eu sempre me senti muito julgada, assim, de você entrar num lugar e as pessoas estão tipo: ‘Deixa eu ver qual é que é.’ E aí você tem que provar, sabe? Acho que até disso, pensando bem, isso é um insight que eu tive agora. Talvez até por isso eu tenha essa postura de palco bastante agressiva, que é para tipo: ‘Ah, você tá duvidando? Então deixa eu mostrar para você aqui que eu sou louca. Ah, não vem não, que eu sou bem louca no palco.’ Então, acho que isso vem muito disso aí também. E várias outras coisas, né? Aí, depois de um tempo, beleza, as pessoas aceitaram. Rolou o famoso: ‘Aceita que dói menos, Nervosa veio para ficar, vai ficar fazendo pó, se você quiser, mas manda áudio pra gente, manda lá, manda lágrima.’
E aí, mas aí depois, foram ficando mais sutis as coisas, né? Então, essa coisa de tipo, isso de prevenir a gente de entrar no próprio camarim. E pessoa que vai tirar foto e toca no peito, toca na bunda. Aí você tem que falar: ‘Amigão, se fosse o Kerry King aqui, tu ia fazer isso? Tu não ia fazer isso, então não faz comigo também.’ Então tem isso, né? Hoje eu noto, trazendo uma visão um pouco mais… hoje que eu tenho um entendimento do feminismo, de alguns conceitos sobre o próprio patriarcado, um pouco mais claros na minha cabeça. Então, eu consigo ver outras coisas ainda mais sutis, que, por exemplo, um nível de exigência absurdo que existe em relação à mulher. Então, a mulher tem que estar impecável no palco, porque senão, quando que você viu um cara falando: ‘Nossa, mas o fulano tá grisalho,’ né? Porque agora eu comecei a receber comentários, né? Porque eu estou grisalho. Eu amo, gente. Eu acho maravilhoso. O tanto que eu me lasco para tentar ter o cabelo cinza, sabe? A galera que tem natural, aceita, é tão maravilhoso. Eu acho ótimo. Então, assim, qual foi a última vez que você viu alguém falando isso numa banda de cara, tipo: ‘Nossa, mas que roupa zoada que o fulano tá usando,’ meu? Ninguém fala isso, né? Quanto à mulher, sim. Então, a mulher, se ela usa roupa muito larga: ‘Ó lá, tá querendo ser igual aos caras.’ Se usa roupa muito sexual: ‘Ó lá, tá querendo mostrar os peitos na hora que toca.’ Então, assim, não há saída pra mulher, né? A mulher tem que… existe muito isso. É uma coisa do patriarcado, de a mulher ocupar um lugar imaculado, né? Então, existe essa exigência de que temos que ser imaculadas. E quando eu digo imaculadas, são perfeitas. E não somos, porque não existe essa cobrança dos caras. Não deveria existir das mulheres também, né? Mas existe isso. Então, essa é uma coisa sutil que acontece muito. Então, existe muito, por exemplo, sabe uma coisa que a gente ouvia muito na Cripta no começo? Que a gente estava na fase do Echoes of the Soul, a gente usava muito rebite. ‘Acho o visual forçado,’ diz a pessoa que ouve todas as bandas com spike desse tamanho, assim. Falava: ‘Cara, qual a coerência?’ E essa coisa porque a mulher não pode fazer essas coisas, né? E é uma coisa que os próprios caras nem notam que eles estão fazendo. Uma outra coisa que existe, que é mais sutil, é essa mania feia, isso na sociedade em geral, mas que também existe no metal, de colocar mulher contra outra. Nossa, isso é muito feio. Os caras não entendem que a gente é tudo parceira, né? E fica querendo criar umas competições: ‘É porque a Mayara canta melhor.’ Cara, tipo, a gente é assim. É porque não sei quem canta melhor. Cara, quando eu saí da Nervosa, eu era marcada em enquete o tempo inteiro, que era: ‘Quem é melhor, a Diva ou a Fernanda?’ E o povo votava: ‘Quem é mais gata, a Diva ou a Fernanda?’ E eu ficava tipo: ‘Cara, que esforço.’ E tipo, a Diva foi no nosso show em Madrid agora, me emocionei para caramba. Menina maravilhosa, eu amo. Eu quero mais é mulheres ocupando os espaços. Eu não quero ser melhor ou mais bonita que a… a gente não se importa, amigos, com esse tipo de coisa. A gente quer ser parceira. A gente quer… quando uma mulher coloca a gente nesse lugar, existe. Mas é o próprio patriarcado.”
Formado em História pela Universidade Estadual de Minas Gerais.
Fundador e editor do Confere Só, que começou como um perfil do instagram em 2020, para em 2022 se expandir para um site.
Ouvinte de rock/metal desde os 15 anos, nunca foi suficiente só ouvir aquela música, mas era preciso debater sobre, destrinchar a obra, daí surgiu a vontade de escrever que foi crescendo e chegando a lugares como o Whiplash, Headbangers Brasil, Headbangers News, 80 Minutos, Gaveta de Bagunças e outros, até ter sua própria casa!