Ashtoreth apresenta em seu excelente disco de estreia Bruxólico, doom metal sobre cultura local, bruxaria e feitiços

“Bruxólico” (2022), o disco de estreia do Ashtoreth, chegou em minhas mãos por completo acaso. Ele veio até mim graças a um ato de muita gentileza, junto com os livros “Música Extrema: Ruídos, Imagens e Sentidos” e “Diálogos Com A Música Extrema”, obras undergrounds primorosas enviadas por Cristiano dos Passos (Sengaya, ex-Antichrist Hooligans, ex-Necrobutcher).

Dois anos depois de seu lançamento, quis o destino me colocar em contato com um dos melhores discos do metal nacional que ouvi, não só em 2024, ano repleto de ótimos lançamentos, mas desde então – e digo isso sem exagero nenhum.

Formado por músicos com passagens por variadas bandas do underground de Florianópolis, recebi do Cristiano a informação de que o grupo faz em suas letras referências a cultura local e foi aí que descobri que Floripa, muito mais do que um lugar cheio de praias incríveis, arquitetura secular e tradições açorianas, também é conhecida como a “Ilha da Magia” devido as lendas que falam de bruxas, assombrações e feitiços. Só para citar alguns pontos turísticos locais nessa linha, a ilha tem o salão de festas das bruxas do bairro do Itaguaçu; as lagoas da Conceição e do Peri (batizadas assim pela bruxa e índio, transformados em lagoas distantes entre si como punição pelo seu amor proibido) e Anhatomirim, “a pequena ilha do diabo” em Tupi, local da prisão, enforcamento e fuzilamento de centenas de pessoas.

Inspirados por toda essa mística local e outros elementos, o Ashtoreth compôs as letras do disco, repletas de um português erudito. Musicaram ainda, na íntegra, dois poemas de João da Cruz e Sousa (1861-1898) na faixa “Majestade Caída/Visão”, retirados dos livros “Broquéis” (1893) e “Faróis” (1900, obra póstuma), respectivamente. João, o “Dante Negro” ou “Cisne Negro”, era filho de escravos alforriados que recebeu educação formal do ex-senhor de seus pais. Tido como fundador do Simbolismo brasileiro, movimento cultural originado da França marcado por abordar o mistério e o misticismo em oposição ao racionalismo e cientificismo, se tornou uma figura cultuada e reconhecida na cidade, tanto que, o antigo Palácio do Governo recebeu seu nome, assim como ruas e avenidas de outros municípios.

Por sua vez, a capa e título de “Bruxólico” (2022) são criações de Franklin Joaquim Cascaes (1908-1983), que deixou um riquíssimo legado cultural para a cidade, como objetos, gravuras, desenhos, etc., frutos do seu trabalho por mais de 30 anos junto a população da ilha coletando histórias e estórias místicas em torno das bruxas, inspirou a capa e interior do encarte. Quanto ao título, “bruxólico” foi um termo seu para denominar “a bruxa enquanto figura catalisadora de um determinado estado de existência”.

Conceitos explicados, chego então na parte sonora do Ashtoreth. Entre o peso moroso do doom metal e ambientações diversas, as seis faixas do disco estão distribuídas em 40 minutos de um metal assombroso e fascinante. Vocais rasgados ou mesmo sussurrados, guitarra no talo com efeitos diversos, baixo distorcido, muita percussão e até mesmo cítara, contribuição primorosa do músico multi-instrumentista e compositor caboverdiano Jeff Nefferkturu na ora hipnótica, ora sinistra “Serpente Nos Cabelos”, convivem harmoniosamente em uma produção impecável, obra da banda e do Undergrave Studio, que deixou cada efeito, cada timbre, cada ambientação vibrante e precisa.

“Bruxólico” (2022) é um material sui generis da música underground nacional, de uma riqueza sonora e lírica ímpares que para ser verdadeiramente compreendido deve ir além da simples audição: ele precisa ser sentido, incorporado, como se então você passasse a fazer parte das lendas locais (não acredito em bruxas, mas que elas existem, existem…).

Lançado pela Dejeto Sonoro Records, Fat Zombie Records e Antichrist Holligans Distro, “Bruxólico” (2022) é a primeira parte de uma trilogia que aguardo desejoso pelo seu segundo ato.

Formação:

Meimendro Negro: rogador de pragas (vocais)

Cerviciam: chave sônica do portal astral (guitarra, vocais)

Veneficus: tremores noturnais (baixo)

Opium: tambores de guerra e viagens espirituais (bateria, percussão, efeitos e vocais)

Jeff Nefferkturu: cítara (convidado)

Indra Rosa: vocais (convidada)

Faixas:

01 Convenção Das Bruxas No Pântano Do Sul (Mantra Inicial) (intro) feat. Indra Rosa

02 Lua Errante

03 Serpente Nos Cabelos feat. Jeff Nefferktur

04 Majestade Caída/Visão

05 O Menestrel E O Oceano

06 Retorno de Lúcifer (Mantra Final)

Nota: 10

Mario Pescada

Mineiro, leitor compulsivo, ouvinte de todas as vertentes do rock - do blues ao grindcore. Valoriza mais a honestidade e entrega em cima do palco do que a técnica. Guarda os flyers dos shows que vai como se fossem relíquias. Autor do livro "Distorções do Submundo: Dissecando álbuns matadores do underground brasileiro" lançado pela Editora Denfire.

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