“Atom Heart Mother”: o disco odiado internamente mas crucial a pavimentação do Pink Floyd ao estrondoso sucesso

Clássico disco da banda inglesa, lançado em 2 de outubro de 1970, ainda que seja detonado e mal avaliado pelos próprios integrantes, foi o início da modificação musical que levaria o grupo ao estrelato três anos depois

O Pink Floyd é inegavelmente uma das bandas mais conhecidas da história. Com mais de 250 milhões de cópias vendidas (em dados estimados atualizados), temos um grupo que definitivamente teve sua obra consumida por grande parte dos fãs de música – em especial sua trajetória nos anos de “ouro” da banda, ocorridos entre 1973 e 1983, e que compreendeu trabalhos comercial e artisticamente seminais como “The Dark Side of the Moon” (1973), “Wish You Were Here” (1975), e “The Wall” (1979). Entretanto, a grande discografia do conjunto, obviamente, possui outros lançamentos de igual, se não maior, importância do que os trabalhos citados, e que nem sempre são muito lembrados, ouvidos, e reverenciados.

Este é o caso de “Atom Heart Mother”, quinto disco de estúdio do Pink Floyd, lançado em 2 de outubro de 1970. O trabalho, que nos anos subsequentes, mais ficou famoso pela sua icônica e idiossincrática capa – a famosa “capa da vaquinha – é de uma importância vital para o grupo inglês e o desenvolvimento de seu som. Importância que deveria ser altamente mensurada e comparada aos já citados discos mais aclamados de sua carreira. E aqui neste artigo, a Confere Rock fala dessa importância.

A história de “Atom Heart Mother” e o Pink Floyd pré-1970.

Para falarmos sobre toda a história do disco, temos, claro, que traçar o panorama histórico do Pink Floyd à época. Em 1970, o grupo – composto por David Gilmour (guitarra e vocais), Roger Waters (baixo e vocais), Richard Wright (teclados e sintetizadores), e Nick Mason (bateria e percussão) – já estava ativo há pelo menos quatro anos. A banda até então havia perdido seu líder, Syd Barrett, após o lançamento do seu aclamado disco de estréia: “The Piper at The Gates of Dawn” (1967), clássico da cena psicodélica britânica. Com a saída de Syd e subsequente chegada de Gilmour, o Pink Floyd passou os anos seguintes tentando se encontrar musicalmente em uma amálgama sonora nada específica: uma fusão entre o já som psicodélico, o avant-garde, o acid rock e a noise music em seus álbuns seguintes: “A Saucerful of Secrets” (1968), e o metade ao vivo/estúdio “Ummagumma” (1969).

Embora os discos tenham tido sua base de admiradores à época, os trabalhos apresentavam, ainda que com excelentes manifestações artísticas, uma certa indefinição do que o Pink Floyd era musicalmente, da identidade específica da banda. Neste interim, duas trilhas sonoras foram produzidas: “More” (1969), e “Zabriske Point” (1970). Elas, recheadas de experimentos vanguardistas, mostravam ainda mais a deliciosa, mas confusa, e nada atrativa a um grande público comercial, verve artística do grupo. Neste cenário atolado no avant-garde, na experimentação, e no anarquismo estético e sonoro, o Pink Floyd chegara em estúdio para seu quinto trabalho.

Já de início, os integrantes da banda queriam uma abordagem musical um tanto mais direta e específica em relação aos discos anteriores, mantendo, claro, as doses de experimentalismo, mas acopladas em números musicais mais atrativos, em especial com refrões, versos, solos, fade-out, e etc. A banda inicialmente chegou cogitar gravar o álbum em Roma, na Itália, para testar novos ares, mas decidiu por produzir “Atom” na Inglaterra, no Abbey Road Studios.

Depois dessa discussão a respeito de onde o trabalho seria gravado, a banda efetivamente iniciou a pré-produção do álbum aos poucos. Como era de praxe para novas composições, o Pink Floyd começou a testar novas músicas que os membros iam compondo já nos shows e performances. Foram justamente nas apresentações que partes substanciais do trabalhos foram compostas ou desenvolvidas, como as melodias principais da suíte “Atom Heart Mother“, e as baladas folk “If” e “Fat Old Sun“.

Em março de 1970, a banda entrou em estúdio para iniciar a pré-produção. Roger Waters, baixista e principal letrista do Pink Floyd à época, tentou convencer os membros a participação de Ron Geesin, compositor e arranjador, no álbum, como produtor. Inicialmente, os integrantes ficaram duvidosos da ideia, mas acabaram cedendo. Um fator que fez que Waters elegesse Geesin para “dar um help” no trabalho foi a paixão do compositor em trabalhos orquestrais, algo que já era ensaiado musicalmente pela banda para um trabalho futuro. Embora viesse de um background vanguardista, a participação de Geesin nos arranjos orquestrais ajudou o Floyd no processo de uma padronização das faixas em um formato específico em um disco. Essa padronização veio em uma época oportuna, onde o rock sinfônico e progressivo estava começando a ganhar apelo popular. Vale lembrar que trabalhos de sucesso como “Concerto for Group and Orchestra“, do Deep Purple (1969); “Days of Future Passed, do The Moody Blues (1968); e em especial o sinfônico [ainda que a orquestra não participe, e sim o famoso mellotron] “In The Court of Crimson King”, do King Crimson (1969) saíram neste exato período.

Logo depois da vinda de Geesin, a banda decidiu conceber o álbum em um formato autoral parecido com “Ummagumma“; o primeiro lado do album seria uma composição de todo o grupo em conjunto, e o segundo lá consistiria de faixas individuais a priori idealizada por cada um dos membros. Com estas duas “regras” acordadas, a produção do trabalho finalmente começou.

O álbum

A primeira faixa a ser desenvolvida foi a suíte-titulo “Atom Heart Mother”, que abre de maneira mágica, cinematográfica e belíssima o trabalho. A música foi um notório exemplo de como os “testes ao vivo” ajudaram a composição do álbum, com a épica canção resultante de várias pequenas peças instrumentais compostas. A banda sentiu que as performances ao vivo desenvolveram a peça em uma forma convincente e, nas palavras de Roger Waters, “hipnótica” suficiente, para que ela merecesse ser completada e gravada.

Apesar de em alguns poucos ensaios depois, já em estúdio para o disco, a faixa ter sido completada em sua composição, um problema se instalou durante a gravação: os membros ficaram indecisos sobre o uso de partes orquestrais na faixa e se elas eram boas o suficiente. Geesin já estava compondo as partes orquestrais e de corais para a faixa, a pedido de Gilmour e Waters, mas não havia as arranjado e conduzido uma orquestra para a gravação. Ambos pediram para que Geesin ouvisse a música pronta (sem as partes orquestrais, apenas com os 4 membros tocando) para que ele pudesse reescrever novas partes orquestrais sugeridas pelos dois, o que atrasou o andamento da gravação da orquestra.

Para a composição, foi contratada a orquestra do estúdio Abbey Road, a Abbey Road Session Pops Orchestra. Como a orquestra estava ocupada em outros projetos, a banda teve de esperar até o final de junho de 1970 para a gravar a tão esperada parte orquestral. A base da música já havia sido finalizada desde abril, porém o grupo precisava da Pops Orchestra para finalizar o arranjo; enquanto esperava a disponibilidade dos músicos, o Pink Floyd trabalhou em outras faixas. Quando finalmente a música título pôde ser gravada, os músicos da orquestra tiveram dificuldade para entender o que Geesin e a banda queriam.

A gravação foi salva pelo gongo por um motivo inusitado: John Alldis, condutor do coral na música, vendo a dificuldade de Geesin e do resto da banda em transformar em partituras a melodia orquestral desejada para a faixa, se prontificou para escrevê-las para os músicos. Devido a isso, a banda improvisadamente relegou a Alldis, que não só conduzisse o coral da suíte, mas que também fosse o “maestro” de todo o restante da parte orquestral. Originalmente, quem conduziria a orquestra seria o próprio Geesin, que acabou tendo dificuldades ao exercer a função na hora. Com a gravação orquestral e das backing tracks finalmente completadas, o conjunto decidiu fazer outras pequenas alterações: em especial no título da música, que se chamava “Amazing Pudding”. O título “Atom Heart Mother” só veio perto já perto da finalização da mixagem para o lançamento. A ideia veio quando Geesin mostrou para Waters uma edição do jornal inglês Evening Standard e sugeriu a Waters que encontrasse um título nas matérias que soasse interessante. Uma das manchetes era: “The Atom Heart Mother Named” (O Coração De Mãe Feito de Átomo). A reportagem em questão falava de uma uma mulher grávida que estava sendo equipada com um marcapasso movido a energia nuclear. Vendo aquilo, Waters imediatamente mudou o título, e consequentemente, o nome do álbum.

Como o título foi renomeado, a banda decidiu mudar o subtítulo de algumas das partes da faixa. Originalmente, as partes da suíte só eram intituladas “movements 1,2,3, etc”, e a banda decidiu renomear cada parte com um nome ou uma frase. O nome da primeira parte “Father’s Shout” foi escolhida por Geesin, inspirada em um curta-metragem que ele havia assistido durante uma reportagem na TV. Já “Mind Your Throats Please!” foi escolhida por Richard Wright, por ser uma frase que ele sempre dizia a Waters e Gilmour, quando eles tinham discussões artísticas em estúdio. A música é um perfeito exemplo de como a bela estrutura orquestral em partes mais atrativas, sinfônicas e barrocas mescladas à momentos de puro jam e avant-garde formam um trabalho equilibrado, singular, e que contempla o ouvinte em uma viagem épica hipnótica que dura rápidos 23 minutos.

“If” é uma balada folk escrita por Roger Waters. Parte da melodia inicial já havia sido executada em alguns shows em 1969, como abertura instrumental para a faixa “Grandchester Meadows”, do disco Ummagumma. As letras da faixa, porém, só foram escritas perto do início das gravações. O conceito lírico da música, bastante calma e pastoral – típica do estilo de Waters nesse período – são claramente inspiradas no poema “Se”, de Rudyard Kipling. Apesar disso, há uma sutil diferença do poema para a canção; enquanto no primeiro o poeta faz uma reflexão que se volta ao seu filho, na faixa, Waters faz uma reflexão que se volta para si.

“Summer 68” é uma faixa escrita pelo tecladista Richard Wright para o álbum. A melodia da música segundo Wright foi escrita em duas tardes no início do período de gravação de “Atom”, em março de 1970. A letra fala de um encontro de um rapaz (interpretado por Wright) com uma groupie. O tecladista, anos depois, teria dito que se inspirou em um fato real, ocorrido com o próprio, em 1968, durante uma passagem da banda nos Estados Unidos, onde ele teve um caso, ou uma “one night-stand”, com uma groupie.

Originalmente, a faixa teria um solo de sintetizador, porém Ron Geesin sugeriu que a banda usasse um trompete para o solo. A música, assim como a faixa-título, contém um naipe de metais na gravação e foi lançada como single na época. Isto é mais um sinal representativo de como a sonoridade do Pink Floyd estava gradativamente mudando para uma abordagem mais simplificada; “Summer” é tipicamente um número pop barroco, tradicional nos anos 60 em seus singles. Regada ao belo piano de Rick e seus serenos vocais, não é à toa que a canção foi lançada como compacto, se esquivando bastante da experimentalidade e da “bizarrice” estrutural de outros tempos anteriores da banda.

A próxima canção também é uma ode ao simples e ao marcante: “Fat Old Sun”. Escrita por David Gilmour, a composição é claramente uma música que ecoa e ressoa trabalhos futuros do quarteto. Com a base acústica, a voz de Gilmour e a nuance melódica forte aqui em refrões e letras, fica impossível não se atentar que o DNA dos trabalhos mais conhecidos do Pink Floyd já não começa a ser plantado aqui. Apesar da estrutura minimalista (Gilmour tocou todos os instrumentos sem o auxílio dos demais membros, com apenas uma participação de Richard Wright no órgão), a música já soa completa, madura em sua beleza.

O disco se encerra com a suíte spoken-word e vanguarda “Alan’s Psychdelic Breakfast”. Esta uma referência aos trabalhos mais obscuros e experimentais do conjunto, é uma faixa de 13 minutos de duração, dividida em três partes e permeada por falas e vocalizações de Alan Styles, roadie da banda e que fez participação especial aqui. Como o nome da faixa sugere, a música “narra” uma pessoa preparando, tomando seu café da manhã, e saindo para o trabalho, com os instrumentais eventuais da banda, vozes e efeitos sonoros (aqui temos desde ovos fritando até chaleiras apitando, excepcionais efeitos de fita). A música, baseada numa ideia de Mason, fez com que a banda levasse um mês inteiro pra encerrar a gravação, já que o grupo teve de coletar os sons e as falas de Alan em fitas diferentes, e na mix final, coube a Alan Parsons, engenheiro de som do disco, combinar o som das duas fitas e inseri-las no instrumental gravado. Os sons foram gravados na cozinha de Mason em três manhãs seguidas de uma semana em agosto de 1970, e a faixa foi renomeada “Alan Psychdelic’s Breakfast” em homenagem ao roadie Alan, que fez o personagem da faixa.

Capa e trabalho gráfico

A ideia da capa do álbum original, projetada pelo grupo de arte Hipgnosis, mostra uma vaca sob um pasto, teve seu conceito motivado à reação do grupo às imagens psicodélicas associadas ao Pink Floyd na época do lançamento de “Atom”. Logo, por isso, a banda queria criar uma capa “anti-imagem” para o trabalho. A banda então pediu à Hipgnosis, grupo artístico que fazia as capas do grupo, que em seu à época novo disco tivesse “algo simples e estático” na arte, que acabou sendo a imagem de uma vaca. Storm Thorgerson, líder do conjunto artístico, inspirado no famoso “papel de parede de vaca” de Andy Warhol, relatou em entrevistas que dirigiu-se para uma área rural perto de Potters Bar, interior da Inglaterra, e fotografou a primeira vaca que viu. O dono da vaca identificou seu nome como Lulubelle. Outras “parentes”, que estavam no rancho, aparecem na contracapa, formando a bizarra e incrível arte gráfica.

O legado “that it should have”

O disco no frigir dos ovos, deu certo. O álbum alcançou o topo das paradas inglesas e pavimentou o caminho comercial que o Pink Floyd seguiria nos lançamentos seguintes. Para além do comercial, “Atom” mostrou o DNA de um som mais direto, conciso e com muita personalidade, que faria o grupo estourar três anos depois, com “The Dark Side of the Moon” (1973). A experimentalidade, outrora predominante no repertório dos discos anteriores, aqui deu espaço gradativo a melodias mais atrativas ao grande público, dentro, claro, da originalidade sonora do Floyd. A minimalista “If”, a grande balada “Fat Old Sun”, e a barroca “Summer 68”, conversam muito mais com lançamentos futuros que os do passado, inegavelmente. As belíssimas orquestrações da faixa-título também não se diferem das grandiosas e ao mesmo tempo hipnóticas linhas orquestrais presentes em “The Wall”, e “The Final Cut” (1983), por exemplo.

Apesar de muito criticado pelos próprios membros em anos subsequentes, e pouco lembrado por conhecedores de música generalistas e que conhecem o Pink Floyd pelos seus trabalhos mais conhecidos, “Atom Heart Mother” é um disco que inegavelmente está entre os melhores trabalhos do Pink Floyd. Um disco que pavimentou o que fez a banda vender meia centena de milhão em “Dark Side”, e antecipou a megalomania orquestral de “The Wall” e “Final Cut”, e que ao mesmo tempo, preservou a idiossincrasia avant-garde de seus lançamentos prévios sem soar pedante, apelativo ou forçado. Um disco que merece muito mais atenção do que sua famosa capa, este é “Atom Heart Mother”

Faixas e ficha técnica:

1 – “Atom Heart Mother” :
I. “Father’s Shout”
II. “Breast Milky”
III. “Mother Fore”
IV. “Funky Dung”
V. “Mind Your Throats Please”
VI. “Remergence”
2 – “If”
3 – “Summer ’68”
4 – “Fat Old Sun
5 – “Alan’s Psychedelic Breakfast“:
I. “Rise and Shine”
II. “Sunny Side Up”
III. “Morning Glory”

David Gilmour – guitarra, vocals
Roger Waters – baixo, violão, vocals
Richard Wright – teclados, órgão, vocals
Nick Mason – bateria e percussão

Músicos adicionais:
EMI Session Pops Orchestra – orquestrações (faixas 1,3)
John Alldis Choir – coral (faixa 1)
Alan Styles – voz e efeitos (faixa 5)
Ron Geesin – “produção artística”; composição (faixa 1).

Kelvyn Araujo

Formado em Jornalismo pela Universidade Do Grande Rio. Com experiência jornalística em rádio, audiovisual e redes sociais de anos, é apaixonado por música e todas as suas vertentes. Atual editor-chefe e host do canal/página Progland, sobre rock progressivo.

2 thoughts on ““Atom Heart Mother”: o disco odiado internamente mas crucial a pavimentação do Pink Floyd ao estrondoso sucesso

  • dezembro 1, 2023 em 10:20 am
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    Álbum mais SUBESTIMADO e maltratado da história da Música.

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  • março 18, 2024 em 11:50 am
    Permalink

    Redação incrível, Kelvyn Araujo!

    Eu sou completamente apaixonado por esse disco, especialmente pelas duas suítes. Minha jornada com o Pink Floyd não começou com os álbuns mais conhecidos como The Dark Side of The Moon, The Wall, ou Wish You Were Here, como é mais comum entre o público em geral.

    Na verdade, começou com o Atom Heart Mother, que desde o primeiro momento me prendeu do início ao fim. Nunca havia escutado nada parecido antes e me identifiquei imediatamente.

    Adoro o rock progressivo e o experimentalismo dos anos setenta, e o Pink Floyd foi fundamental nesse processo.

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