Gutalax supera queda de energia pré-show e faz do La Iglesia o palco de uma “missa fecal” em primeira noite de apresentação
Texto: Tiago Pereira
Show ocorreu após atraso causado pelos impactos da chuva na capital e esforços da organização por gerador; apresentação contou com dedicatórias, piadas, participação especial e muita diversão do público
Nem sempre o termo “show de merda” tende a se referir a um show ruim, ou uma banda ruim. Há um caso específico em que o termo é direcionado para uma banda boa, com um show cujo tema é o cocô. E o Gutalax, grupo de Goregrind e Pornogrind da República Tcheca (ou Chéquia) formado em 2009, mostrou isso da melhor forma na última quarta-feira (12), no show extra realizado no La Iglesia Borratxeria, na Zona Oeste de São Paulo, um dia antes da primeira data anunciada, no Hangar 110. O evento, organizado pelo Caveira Velha Produções, contou também com a abertura do duo de Goregrind brasileiro Trachoma.
Essa foi a primeira apresentação das cinco previstas pelo Brasil na turnê que marca a segunda passagem do Gutalax em solo brasileiro, já que em 2018 o grupo veio ao Brasil para dois shows em Duque de Caxias, Rio de Janeiro, e São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. Dessa vez, além desta apresentação no La Iglesia e a do Hangar, ambas em São Paulo, o quarteto tcheco ainda passou por Belo Horizonte (14), Rio de Janeiro (15) e Curitiba (16).
Apesar dos problemas de energia elétrica no local e no bairro, fruto das chuvas que ocorreram na tarde do mesmo dia e que causaram cerca de duas horas de atraso – situações melhor explicadas mais abaixo -, o evento aconteceu após a chegada e a instalação de um gerador de energia, possibilitando que a banda de abertura e a principal tocassem seus setlists por completo. Num geral, pouco mais da metade da capacidade do La Iglesia foi ocupada, mesmo considerando aqueles que optaram por voltar antes do evento realmente começar, ou até em algum momento antes do término, por preocupação com a volta pra casa.
Quem ficou até o final presenciou um público que fez por onde em termos de loucuras na pista. Os moshes, bate-cabeças e danças intermináveis foram turbinados pelas fantasias de alguns fãs, animais infláveis a exemplo de um cavalo, quilômetros de papel higiênico e até alguns fãs mais enérgicos, a exemplo de um que, em momentos esporádicos, gritou a palavra “cocô” com todas as forças. Além disso, o Gutalax trouxe um repertório de 15 sons que explorou toda sua discografia de álbuns e splits, somados a piadas com os temas de suas músicas e até mesmo um “cover” de Meshuggah, que nada mais foi do que uma música rápida em ironia ao tempo de cada faixa da banda sueca, e até mesmo uma versão “gutalaxizada” de “O Velho McDonald Tinha Uma Fazenda”.. Houve, também, danças por parte dos membros da banda, gestos engraçados e a participação de Thiago Monstrinho, vocalista do Worst e amigo de longa data de Martin “Maty” Matoušek, vocalista do Gutalax.
Impactos e dúvidas após a chuva da tarde
Como breve e anteriormente mencionado, São Paulo sofreu impactos significativos com as chuvas que caíram no período da tarde. Não foi diferente com a região em que o La Iglesia se localiza: o bairro e os entornos de Pinheiros ficaram sem luz, o que antecipou o fechamento de diversas lojas. A exceção ficou com prédios e estabelecimentos com geradores de energia. E tudo isso era visível muito antes de chegar ao local, seja pelos trajetos de ônibus, seja pela caminhada feita a partir da descida dele.
Um dos exemplos da destruição das chuvas aconteceu na quadra anterior à da casa de shows, em que uma árvore caiu e derrubou fios e entortou uma placa de trânsito. Ela, provavelmente, causou a queda de luz ao menos naquela área.
No La Iglesia, fãs que chegaram cedo ou dentro do horário anterior ao início previsto do evento – e até depois – esperaram pela chegada do gerador de energia solicitado pela organização. Com isso, um grupo de pessoas esperou na fachada do estacionamento que envolve o local, outros pequenos grupos em várias regiões da descida para a entrada e, por fim, boa parte dos fãs que ficaram em uma fila organizada.
A ativação completa da energia do La Iglesia pelo gerador e os breves testes de som acabaram às 22h. Nesse tempo, uma pequena parcela de pessoas já tinha ido embora por conta do horário e por uma possível questão de transporte, mas a maioria dos pagantes e boa parte da Imprensa permaneceu. E assim, a noite pôde iniciar, com a inclusão da comemoração de quem ficou, quando as luzes acenderam de vez.
Trachoma
O duo brasileiro de Goregrind, formado por Rafaela Begore (vocal e bateria) e Thales Zago (vocal, guitarra e baixo), abriu a noite praticamente emendados ao horário de entrada do público. Com temas relacionados a violência, Gore, vermes e doenças, a banda trouxe um setlist de 24 faixas rápidas e pesadas para o público que chegava ao La Iglesia.
Por conta de um problema que me demandou sair da entrada do local em busca de sinal – algo também afetado por conta das chuvas -, perdi uma boa parte considerável da apresentação de abertura, chegando apenas na reta final. E tomando como base as faixas finais ouvidas, foi uma experiência interessante.
Rafaela e Thales cantam enquanto tocam, seja juntos ou alternando por músicas. Eles usam de um efeito para tornar a voz extremamente grossa e grave, para assim combinar com guturais e com a ambientação que a sonoridade goregrind e a temática das letras. E tal sonoridade foi um dos pontos fortes da reta final da apresentação, o que gerou até mesmo uma pequena roda de bate-cabeça na frente da pista.
Momentos antes do show principal
Apesar de qualquer problema antes do início do evento, o público que ficou no La Iglesia seguiu tranquilo com a garantia de que o show do Gutalax ocorreria. Rodas de conversa eram vistas por todos os lados, assim como uma concentração considerável na área do bar. Próximo do palco, João Gordo, do Ratos de Porão, e filhos, também aguardavam pela apresentação. Gordo, inclusive, completou 61 anos no dia seguinte.
Os membros do Gutalax subiram ao palco pela primeira vez quando faltava menos de trinta minutos para 23h. No caso, eles fizeram os últimos ajustes de montagem com os roadies e, logo depois, uma pequena passagem de som frente ao público para ajustar os volumes dos instrumentos e o microfone. O vocalista, inclusive, saudou o público e a equipe, trazendo gargalhadas sinceras do público no primeiro “ronco” que fez para testar seu microfone.
Com tudo ajustado, o quarteto tcheco voltou ao backstage para se uniformizar. Às 23h04, a introdução surgiu no PA e os membros entraram oficialmente. Alegres, animados e sob o tema do filme “Ghostbusters”, feito por Ray Parker Jr., Martin “Maty” Matoušek (vocal), Petr “Mr. Free” Svoboda (bateria), Tomáš “Kojas” Anderle (guitarra) e Pavel “Kebab” Troup (baixo) saudaram o público novamente. “Assmeralda”, faixa que compõe o split da banda de 2017, em conjunto com outras músicas da banda Spasm, foi o som inicial, que teve que recomeçar por conta de um pequeno problema da guitarra. O Riff de Kojas e os primeiros squeals e snortings de Maty foram o suficiente para efervescer os fãs de alegria e formar uma roda já caótica no meio do palco, com direito a pessoas fantasiadas, bichos infláveis e muito papel higiênico. Um prenúncio do que seria o show por um todo!
A música seguinte foi “Nosím místo ponožky kousek svojí předkožky”, cuja tradução em tcheco é nada mais, nada menos que “Eu uso um pedaço do meu prepúcio em vez de uma meia”! Ela compõe o último álbum de estúdio lançado pelo quarteto, “The Shitpendables” (2021), e trouxe o melhor da veia pornogrind da banda, somada a mais um ótimo riff de Kojas e uma boa cadência da bateria de Mr. Free. No meio da faixa, Maty ainda mandou algo que pareceu a frase “There’s my Socks” – “aqui estão minhas meias”, além de a energia da banda ter espaço para um “breakdown” que fez com que eles pulassem e bangueassem no palco.
Maty mandou um “good evening, guys!” ao final da música anterior, emendando com um discurso irônico e cômico sobre o Gutalax “ser uma banda de Disco”. Nisso, o frontman da banda pediu para os fãs dançarem em “Shit of It All”, mais uma do split de 2017 e que transformou a roda aberta do La Iglesia em uma mistura de roda de pogo com outras danças e mais papel espalhado. Em certo momento, nem Maty se aguentou e começou a dançar com a parede, de uma forma “sensualmente engraçada”. A situação se manteve em “Buttman”, incluindo um fã maluco que, pela primeira vez naquela noite, gritou a palavra “cocô” com toda a energia possível.
A vibe Disco do show veio após um discurso de Maty sobre o tempo de existência da banda, emendado à reprodução de “Celebration”, do grupo Kool & the Gang, no PA. Tal situação não só levou o povo a cantar a faixa junto ao vocalista, como foi o pretexto perfeito para mais uma “sessão de efervescência” do público na música seguinte, “Šoustání prdele za slunné neděle” – ou “Balançando a bunda em um domingo ensolarado”, em tradução livre. Maty, Kojas (já sem sua máscara de gás) e Kebab tocaram e dançaram em meio dos variados squeals do vocalista em meio ao instrumental da faixa.
“Robocock” com certeza foi o momento mais estranhamente engraçado do show. Isso porque Maty, no discurso e no tocar da faixa, fez correlações entre a música e Kebab, a incluir o bizarro momento, durante a execução, em que o frontman “mede”… o suposto *tamanho do outro instrumento* que *chegaria até o joelho do baixista*. E isso foi motivo para altas risadas do público presente, claro.
Maty deu mais um discurso entre faixas e, desta vez, anunciou que faria um cover da banda Meshuggah. Houve até mesmo alguns segundos de suspense – aproveitados por um fã para pedir ao vocalista um autógrafo em seu cavalinho inflável, algo que aparentemente foi gesticulado para acontecer após a apresentação -. No entanto, era a reprodução de “Kocourek Mourek podráždil si šourek”, ou “Mourek, o gato, irritou seu escroto”, faixa presente no primeiro split do quarteto, “Telecockies” (2009), no qual 20 segundos dos 34 na versão de estúdio são somente desta introdução e, depois, vem um breve berro seguido de um ronco. Ao vivo, a situação foi ainda mais rápida e sacramentou uma piada de contraste nas faixas de mais de cinco minutos da banda sueca com os menos de cinco segundos instrumentais da banda tcheca ao vivo, nesta música em questão.
Chegou, então, o momento de “Diarrhero”, faixa mais conhecida da banda e que, consequentemente, tende a ser a primeira do Gutalax a ser citada em qualquer roda de conversa. O público ativo nas rodas aumentou sua intensidade, o que causou um bate-cabeça poderoso e, claro, um novo espaço caótico com papel higiênico e bichos infláveis. Na segunda parte da faixa, Maty e Kojas dançaram frente a frente, mas como se fossem imãs em polos opostos: enquanto o vocalista andava de costas, o guitarrista andava para frente, em sua direção. E vice-versa.
O Gutalax dedicou “Vaginapocalypse” aos homens presentes no La Iglesia, apesar de toda a admiração que eles têm às mulheres – e que foi reforçada neste discurso -. A introdução da faixa é de uma manifestação feminina feita na série “Sex Education”, em que várias das personagens se levantam contra o reitor da escola para defender a personagem Olivia, ecoando a frase “It’s my vagina”. Maty e Kojas, novamente como uma dupla interativa no palco, encenaram a cena de cabo a rabo, antes do começo da música de fato. A sonoridade mais levada ao Hardcore, no início, fez com que muitos dos fãs entrassem na roda para dançar pogo, assim como o vocalista fez no palco.
A música seguinte, tocada após um pequeno discurso em que Maty citava estilos musicais brasileiros como o Samba, foi “Polykání semena z postaršího jelena” – na tradução para a língua portuguesa, seria “Engolindo sêmen de um cervo idoso”. A música, que faz parte do álbum de estúdio de estreia, “Shit Beast” (2011), teve uma pequena abertura em som do que parece ser um idoso em ejaculação, seguida da sonoridade padrão da banda. Logo depois, veio “Fart and Furious”, no qual não houve a reprodução do que, na versão de estúdio, parece ser uma cena de South Park. Porém, aconteceu a organização da Wall of Shit, encabeçada por Maty na frase “Wall of Death Is and old school shit. We use ‘Wall of shit’” – “Wall of Death é uma merda da velha escola. Nós usamos ‘Wall of shit’”, em tradução livre. O bate-cabeça, claro, cresceu em tamanho e a intensidade foi alta até o fim da música.
As dedicatórias da banda voltaram em “Total Rectal”, que foram para as pessoas por trás da turnê da banda e que foi iniciada em meio a uma espécie de polka, motivo fértil para que parte do público montasse um limbo com papel higiênico no meio da pista, para que passassem por baixo da faixa em questão. Com o início do instrumental da banda, aquele limbo voltou a ser uma roda de mosh frenética, com direito a Maty jogando um rolo de papel higiênico para o meio dela. Na sequência, em “Vykouření dařbujána vietnamského veterána” – ou simplesmente “Fumando droga de um veterano do Vietnã”, na tradução para a língua portuguesa -, as nuances de Hardcore voltaram com um headbanging dos integrantes da linha de frente do palco, somados a mais um bate-cabeça frenético na pista e a um dive stage de um fã que conseguiu o abraço do vocalista, Maty.
Outro momento especial do show, já na reta final, foi a presença de Thiago Monstrinho, da banda de Hardcore Punk Worst, que foi chamado por Maty ao palco para cantar “Shitbusters”. Antes da execução da faixa, ambos reforçaram o laço de amizade de anos, com o frontman do Gutalax contando um pouco da história de amizade entre ambos e, claro, presenteando o brasileiro com um óculos personalizado de tampas privadas, além de Thiago também ensinar o público a falar “vai se foder” em tcheco (algo como “jdi do prdele“). Na música, um Thiago enérgico, cantando muito bem, junto a Maty ainda em seus gestos caóticos, dançando com um dos tripés de apoio dos microfones, dançando uma espécie de valsa junto ao vocalista do Worst e, também, mostrando para o amigo… o tamanho do *outro instrumento* do baixista Kebab. Thiago terminou sua participação com um dive stage, voltando assim para a pista do La Iglesia.
Por fim, o Gutalax não pôde deixar de tocar “Strejda Donald”, uma versão adaptada ao estilo da banda da música “O Velho McDonald Tinha uma Fazenda”. Foi o último momento enérgico da banda, os últimos “grunhidos” de Maty e o último gás enérgico do público, que manteve o cenário caótico na pista. Tão caótico que, num momento de descuido e mesmo apenas observando a roda, acabei por levar um rolo de papel higiênico no rosto. Nada que tenha machucado.
A primeira noite do Gutalax em São Paulo não somente mostrou o melhor da banda e o louvável esforço que a organização do evento, por um todo, fez para que isso acontecesse, como também foi claro exemplo de que, mesmo com metade da capacidade, o público no La Iglesia mostrou que, além da fidelidade que levou a ficar até mais tarde, consegue fazer uma “bagunça benéfica” que espanta qualquer cenário ou acontecimento ruim que tenham passado naquele dia. É de se renovar e, claro, eu imagino que a bagunça feita no Hangar 110, um dia depois, tenha sido tão intensa quanto a do primeiro dia. Que o “ode ao cocô” possa acontecer novamente, em solo paulistano e brasileiro, para que mais pessoas entendam o quão divertido é um show do Gutalax!
Confira os setlists abaixo:
Trachoma:
- We Came From the Filth
- Microstomia Treatment
- Adipocere Corpse Wax
- The Body Turns From Green to Red as the Blood Decomposes
- Supplies For Your Own Ostomy Bag
- Brain Eating Amoeba
- Hospital Purge
- The Taste of Human Flesh
- Neurocysticercosis
- Medical Waste
- Human Slaughter
- Spasmodic Movements
- Surgically Diverted
- Diopathic Osteonecrosis
- Cystic Fibrosis
- Myiasis Cavitary
- T.D.I – Dissociative Identity Disorder
- Cadaverine Putrescine
- Delirium Tremens
- Histopathological Techniques
- Gruesome Cannibalistic
- Post-Operative Delirium
- Liquefactive Necrosis (Wet Gangrene)
- MDK/DFC
Gutalax
Introdução: Ghostbusters Theme (por Ray Parker Jr.)
- Assmeralda
- Nosím místo ponožky kousek svojí předkožky
- Shit of It All
- Buttman
Interlúdio: Celebration (música de Koll & the Gang)
- Šoustání prdele za slunné neděle
- Robocock
- Kocourek Mourek podráždil si šourek (anunciado como um cover de Meshuggah)
- Diarrhero (sem introdução)
- Vaginapocalypse
- Polykání semena z postaršího jelena
- Fart and Furious
- Total Rectal
- Vykouření dařbujána vietnamského veterána
- Shitbusters (com participação de Thiago Monstrinho, do Worst)
- Strejda Donald
Outro: I’m So Excited (música de The Pointer Sisters)