Homem Com H mostra Ney Matogrosso homem, bicho, ícone

Fazer um recorte de ícones para se contar em duas horas de filme não é uma tarefa nada fácil, ainda mais de figuras que transcendem épocas e viram um símbolo, uma figura praticamente imortal na história da música de um país. Não há como negar que Ney Matogrosso é um desses casos aqui no Brasil, e quiçá, no exterior.

Uma trajetória tão marcante, seja na música ou no pessoal, não é tarefa simples de se transpor e contar em um único filme, ou mesmo talvez em uma série que fosse, mas essa foi a labuta que Esmir Filho encarou ao escrever e dirigir Homem Com H, que tem a difícil missão de nos revelar alguns detalhes da caminhada de um dos maiores símbolos da música que esse país já teve.

Encarnado por Jesuíta Barbosa, que fica a um mínimo passo de cair na caricatura, mas sabe se conter e literalmente encarna a persona tão forte de Ney sem cruzar essa perigosa barreira, e traz todos os trejeitos do cantor, que tem sua história contada desde o início enquanto criança e a dura criação do pai (Rômulo Braga), já de cara mostrando a força e identidade que tinha, quando em sua primeira discussão entre os dois, ele ainda um garoto solta a frase “pedreiro também é viado”, o que dói mais no pai do que um soco lhe desferido no queixo por um pugilista profissional.

Com um orçamento gigante de nada menos do que 18 milhões, o filme reconstrói as ambientações da época de forma rica e detalhada, mostrando cada período de uma forma fidedigna e as transições dessas eras se passam de forma bastante natural, assim como o dia a dia da nossa própria vida é. Vemos o menino Ney, que não chora mesmo quando atacado pelo pai, virar o Ney bicho, a fera sem jaula que é o contraponto do início do filme, que abre com um take da primeira apresentação solo sua e o pai na plateia num misto de choro e raiva ao se deparar com o filho de uma forma que era imcompreendido tanto pelo pai, como pela plateia, a crítica, os parceiros de banda e até mesmo o próprio Ney Matogrosso.

A montagem do filme usa um recurso que não costuma ser muito bem explorado em longas do gênero, as músicas. Elas não pipocam a cada cinco minutos de filme, e são usadas metodicamente como um complemento ao que se vê em tela e dentro do contexto temporal, sempre como um “suporte” para o que está sendo mostrado em tela, o que é uma sacada que até mesmo Hollywood precisa aprender.

Encarnar um ícone como Ney não é tarefa fácil e como dito, Barbosa poderia muito bem cair numa caricatura barata e caminha nessa corda bamba durante todo os mais de 120 minutos de duração, mas consegue centrar a ação e entrega um trabalho consistente, mesmo quando se trata do lado bicho, integrante do Secos e Molhados e as suas diversas transições durante a carreira solo, começando do Ney Matogrosso bicho acoado e raivoso de “Água do Céu – Pássaro” e suas diversas outras facetas adiante.

Mas é na última meia hora do longa que Jesuíta entrega de verdade um espetáculo no drama. Quando o demônio HIV surge em tela, as maquiagens e vestuários somem e dão lugar ao momento em que Ney aparece como homem, chorando, sentindo pena e medo do que está acontecendo ao seu redor e a decisão de acabar o filme por ali, é um corte profundo e preciso para entendermos como esse artista se tornou não só lenda, mas parte do folclore brasileiro, uma verdadeira instituição nossa.

Ainda que em alguns momentos o filme ganhe tons de série televisiva e não consiga fluir muito, as coisas parecem rápidas demais, mas deveras, estamos falando de um nome com mais de 80 anos de vida e muitos deles dedicados a arte, como isso caberia em apenas 2 horas, ou que fossem 50 horas. Há ainda um sabor de que mais recortes poderiam ter sido aproveitados por ali de seu lado artístico, ao invés de focar tão nos romances, que muitos deles, já sabíamos de diversas outras montagens. Ney desafiou os piores anos do regime brasileiro, e o filme peca em não aprofundar mais nesse recorte em específico, dando saltos muito rápidos dessa época para se prender em longos minutos em dramas pessoais que são justamente onde o filme tem uma sensação de empacar.

Ney Matogrosso é homem, é bicho, é lenda e ao mesmo tempo não é nada disso, é maior que tudo e ter o privilégio de sabermos de seus romances canhestros, as suas próprias lutas que o tornaram presença e identidade, o tornaram o símbolo, é de se agradecer. Para a liberdade e vontade de ser, nosso Ney…

Marcio Machado

Formado em História pela Universidade Estadual de Minas Gerais. Fundador e editor do Confere Só, que começou como um perfil do instagram em 2020, para em 2022 se expandir para um site. Ouvinte de rock/metal desde os 15 anos, nunca foi suficiente só ouvir aquela música, mas era preciso debater sobre, destrinchar a obra, daí surgiu a vontade de escrever que foi crescendo e chegando a lugares como o Whiplash, Headbangers Brasil, Headbangers News, 80 Minutos, Gaveta de Bagunças e outros, até ter sua própria casa!

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