O adeus a Rainha

TEXTO POR: Marcello Rothery

Década de 30. Vila Mariana, São Paulo capital. Uma mulher estava grávida já há mais de 9 meses, e o bebê se recusava a nascer. O parto foi literalmente feito na marra, só salvando a mãe e a filha por milagre.

A mãe, dona Romilda, saiu do hospital enfraquecida, e com a ordem expressa de nunca mais ter filhos.

Teria mais uma, 6 anos depois.

O que vocês acham de uma mulher que passa por tudo isso, entre as décadas de 30 e 40, e ainda fica grávida uma terceira vez, já acima dos 40 anos?

Se você pensou que essa terceira criança jamais teria condições de nascer, errou. Esta criança nasceu em 31 de dezembro de 1947, com o nome de Rita Lee Jones.

Filha caçula super protegida, com carinha de anjo. Só a cara. Rita mostrou desde pequena um comportamento naturalmente ousado, aliado a uma inteligência acima da média, e um bom humor e uma simplicidade tamanha que sempre a levaram a fazer pouco caso de seus talentos pessoais.

Aprendeu a tocar piano ainda criança. Cresceu ouvindo o rock que estourava na época, e também música romântica brasileira. Essa dupla influência acabou sendo fundamental para as diferentes fases musicais que teve na vida.

Na adolescência, já se aventurava cantando com amigas no trio vocal Teenage Singers. Que se juntaria a outro grupo, Wooden Faces, formando um sexteto adequadamente batizado como Os Seis. Com a saída de alguns integrantes, sobraram apenas 3, que mudaram de nome para Os Bruxos. E mais tarde, por sugestão de Ronnie Von, adotariam seu nome definitivo: Os Mutantes.

O talento musical de um lado, o bom humor e a ousadia de outro, e um grande talento unindo os dois lados, fizeram do trio de Rita Lee, Arnaldo e Sérgio Baptista um dos mais cultuados nomes da história da música brasileira. Os Mutantes são reconhecidos e repletos de fãs no mundo todo, até os dias de hoje. A verdadeira salada musical do trio combinou perfeitamente com o movimento da Tropicália do fim dos anos 70, e a união de ambos foi muito natural.

Rita já teria uma página incrível na história só por isso. Mas era apenas o começo. Sua tumultuada saída da banda em 1972 a levou à primeira encruzilhada na carreira. O que fazer agora, expulsa da banda que ajudou a formar, acusada de não saber tocar direito nenhum instrumento?

O que ela fez no primeiro momento foi lindo e mágico, mas lamentavelmente pouca gente conhece. Se juntou a Lucinha Turnbull (talentosa cantora e guitarrista de 17 anos), e após um breve período como a dupla Cilibrinas do Éden elas se juntaram ao guitarrista Luis Carlini, ao baixista Lee Marcuchi e ao baterista Emilton na primeira formação do Tutti Frutti. Essa efêmera formação passeava entre o rock básico, a psicodelia e o progressivo, com Rita e Lucinha dividindo os vocais principais, Lucinha e Luis se revezando nos solos de guitarra, e Rita responsável pelos teclados e pela flauta (é, ela afinal de contas parecia saber tocar alguns instrumentos). Essa fase deixou um disco de estúdio não lançado (mas amplamente encontrado em versões piratas na internet com o nome Cilibrinas do Éden, um ao vivo em 1974 em BH também não oficial cheio de músicas inéditas e bastante progressivas, e um único disco oficial de estúdio: Atrás do Porto Tem uma Cidade. E um único hit: Mamãe Natureza.

A fase seguinte da banda, já sem Lucinha, levou Rita ao estrelato, com os fantásticos discos Fruto Proibido, Entradas e Bandeiras, e Babilônia. Esta é a fase preferida da carreira de Rita para muita gente, e deixou pérolas inesquecíveis como Ovelha Negra, Agora só Falta Você, Coisas da Vida, Jardins da Babilônia e Miss Brasil 2000. Foi este período, principalmente, que levou a Rita a alcunha de rainha do rock brasileiro. Reccomendável para qualquer fã de classic rock que se preze, os discos são exemplos de pegada roqueira, belas melodias, letras sensacionais que transbordam a personalidade e a inteligência de Rita e o talento dos músicos que a rodeavam.

Em 1979, outra encruzilhada. Luis Carlini saiu, levando junto o nome Tutti Frutti e alguns dos músicos da banda. Rita se via em outro ponto de indefinição. E lá foi ela de novo mudar e inovar, adicionando elementos de disco e pop ao seu som, e ficando ainda mais famosa. Agora com o marido Roberto de Carvalho, talentoso multi-instrumentista e compositor. Foi a sua fase de maior sucesso comercial, e se muito fã das antigas torceu (e ainda torce) o nariz para essa fase, muita gente se deliciou com as rádios sendo invadidas por letras super bem sacadas e inteligentes, e melodias mais uma vez adoráveis. O carisma e o talento de Rita continuava com tudo, e esta fase se estenderia por muito tempo ainda, atravessando a década seguinte.

Consagrada como cantora, compositora e multi instrumentista (além dos teclados e flauta, Rita já dominava violão, guitarra e até bateria), Rita a partir daqui ainda se aventuraria eventualmente na TV em alguns programas de debate e entrevista, e esporádicos trabalhos como atriz (nos quais mostrava qualidades, apesar de não ter dado tanto foco a isto). Também se aventurou como escritora. Seu carisma natural a ajudava a manter a fama e conquistar admiradores em todo o país. Sua sinceridade e coragem só aumentava a admiração do público.

Por outro lado, seus exageros e falta de cuidado com a própria saúde cobrariam o preço aos poucos. Dependente química, Rita teve problemas com drogas e álcool durante a maior parte da vida, passando diversas vezes por clínicas de reabilitação, e tendo muitos problemas inclusive no casamento por causa disso.

O primeiro Rock in Rio, que poderia ser mais uma grande realização, acabou sendo para ela uma experiência traumática. Logo ela, que praticamente traçou aqui o caminho. A vida é assim. Como ela mesma falaria em um de seus grande sucessos, são coisas da vida.

Hoje, 9 de maio de 2023, Rita Lee Jones deixou este mundo. A artista, porém, estará sempre viva. Sempre alegre, debochada, transgressora e adorável como sempre foi, no palco e fora dele. Até as lágrimas que nós, fãs, derramamos hoje, darão lugar com tempo à alegria de relembrar esta artista única, histórica, adorável e abusada que Rita Lee foi.

Rita Lee não cabe em uma página. Em um artigo. Ela é muito mais. Quem conheceu sua história sabe. Quem se aprofunda mais nela, fica mais fã ainda. Foi assim comigo. E eu recomendo a vocês que façam o mesmo. Vale a pena. Rita não foi maravilhosa. Rita é maravilhosa! E sempre será. A artista e sua obra ficarão para sempre!

Vai com Deus, Rita! E muito obrigado por ter feito tanta gente feliz!

Marcio Machado

Formado em História pela Universidade Estadual de Minas Gerais. Fundador e editor do Confere Só, que começou como um perfil do instagram em 2020, para em 2022 se expandir para um site. Ouvinte de rock/metal desde os 15 anos, nunca foi suficiente só ouvir aquela música, mas era preciso debater sobre, destrinchar a obra, daí surgiu a vontade de escrever que foi crescendo e chegando a lugares como o Whiplash, Headbangers Brasil, Headbangers News, 80 Minutos, Gaveta de Bagunças e outros, até ter sua própria casa!

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