Paul McCartney de volta a São Paulo em noite inesquecível protagonizada por uma lenda vivíssima
Texto: Daniela Reigas
Restam poucos ídolos dos primórdios do rock ainda na ativa – sendo esse um gênero musical com pelo menos 60 anos de existência, é de se esperar que a maioria tenha partido pra outro plano, não tenha saúde para performances ao vivo, ou simplesmente tenha caído no ostracismo após anos sem produzir trabalhos relevantes; um dos poucos que estão muito distantes desse cenário é ninguém mais, ninguém menos do que Sir Paul McCartney. A turnê “Got Back” retorna ao país menos de 1 ano após sua última passagem pela América Latina, e em São Paulo, novamente no estádio Allianz Parque, onde se apresentou pela primeira vez em 2014, o lendário músico teve os ingressos para uma terça-feira, 15 de outubro, esgotados em poucas horas.
Quem ia adentrando a pista após as 17h já podia ver os telões laterais exibindo o flyer da turnê com a foto de Paul, alternando com um gigantesco QR code dizendo “scan me” (escaneie-me), que direcionava para o site oficial. Às 19:30h, um holofote se acende sobre uma mesinha montada para Chris Holmes, DJ que acompanha Paul há mais de 10 anos fazendo a discotecagem antes do show começar. Rolando diversos mashups e remixes de hits da carreira para aquecer os motores dos fãs, o ápice veio quando entrou “Minha Vida”, a versão de “In My Life” cantada pela saudosa Rita Lee, arrancando palmas da plateia. Pouco depois, o DJ se retirou e sua mesa foi removida e às 20h os telões começaram a exibir a animação que precede o início do espetáculo – tão longa quanto a própria “torre da carreira” do músico que é retratada no vídeo, são 30 minutos de subida até chegar ao cume, em alusão ao telhado onde foi executada “Get Back” pela primeira vez.
Já pelas 20:30h, quando finalmente se vê o clássico baixo Hofner exibindo uma cascata de fogos virtuais, a banda começa a entrar no enorme palco do Allianz e o convidado mais aguardado da noite assume sua posição central, acena para o público e emite o primeiro acorde do extenso setlist da noite: “Hard Day’s Night”, um dos maiores hit dos Beatles. Acompanham o lendário britânico os mesmos músicos desde 2022: Rusty Anderson (guitarra), Abe Laboriel Jr. (bateria), Brian Ray (guitarra/baixo) e Paul ‘Wix’ Wickens (teclado/sintetizador e outros), além do trio de metais Hot City Horns, composto por Mike Davis (trompete), Kenji Fenton (saxofone) e Paul Burton (trombone). Todos se vêem muito sorridentes e dançantes durante a performance desse hino, em particular Brian, bastante expressivo enquanto executa o solo. Na sequência, duas músicas de seus trabalhos com o Wings: “Junior’s Farm”, após a qual o britânico dirige a palavra ao público pela primeira vez com um “E aí São Paulo! Boa noite Brasil” dizendo ainda que é bom estar de volta, e a suingada “Letting Go”, na qual apesar de faltarem vocais de apoio femininos, abrilhantam a performance os metais, e o público acompanha a melodia principal com “o-o-o”s. Paul adora a interação e comenta que é noite de fiesta, que todos irão se divertir muito e que ele tentará falar mais “um pouquinho de português” conosco.
Voltando com mais duas dos Beatles, vem “Drive my Car”, na qual o telão de fundo exibe vídeos das carangas mais iradas dos anos 60, e “Got to Get You Into My Life”, que empolga a galera – até mesmo Rusty dança enquanto toca uma belíssima guitarra vermelha. Como ainda é o início do setlist, Paul alcança as notas mais altas – “o pai tá on!”, como ele mesmo disse ao final da canção. A seguir, um salto no tempo até 2018 com uma das canções mais recentes de sua carreira solo, “Come On To Me”, acompanhada pelo público com palmas; o coro do refrão se estende até mesmo após o término da canção enquanto o jovem de 82 anos tira seu colete de interior listrado como se fizesse um strip-tease e arregaça as mangas de sua camisa, provavelmente tomado pelo calor. O clima de sedução continua com a balada romântica “Let me Roll It”. Munido de uma guitarra estampada bastante colorida, Paul mostra que não domina somente o baixo e executa o icônico riff de “Foxy Lady”, de Jimi Hendrix. “Eu o conheci nos anos 60. Um belo rapaz ele era”. Aproveitando a vibe “flower power”, vem “Getting Better”, e o telão exibe campos floridos e outras referências do movimento hippie.
Finalmente Paul se desloca até o piano montado em palco e executa “Let ‘em In”, dos Wings, com sua bateria característica de fanfarra, que é justamente o tema das imagens no telão, uma parada marchando. Ainda ao piano, temos um dos momentos mais bonitos do show: “My Valentine”; “eu escrevi essa música para minha amada esposa Nancy, ela está aqui hoje”, diz o músico, jogando beijinhos para a câmera, de modo que ela e todos os fãs possam testemunhar a declaração de amor. O palco se mantém escuro, apenas com um holofote sobre o piano, e os telões exibem os videos oficiais da canção, que trazem os atores Johnny Depp e Natalie Portman narrando as letras na linguagem americana de sinais. A plateia aplaude efusivamente a bela homenagem. As luzes se acendem novamente para a próxima canção, a dançante “Nineteen Hundred and Eighty-Five“, dos Wings, onde vemos Wix mandando ver nas maracas, e Abe transformando sua baqueta em batuta para reger os “u-u-us” na pausa acústica da música. Para a última música desse bloco ao piano, temos uma clássica na longeva carreira do compositor – “Maybe I’m Amazed”, cujo riff de guitarra fica a cargo de Rusty, enquanto Paul demonstra seu domínio do piano, ainda que a voz acabe ficando um tanto quanto prejudicada pela dificuldade em alcançar os tons mais altos da canção ao mesmo tempo em que toca. A plateia vibra com a performance e o músico agradece o carinho, desce para retornar ao centro, pega seu violão e pergunta se todos estão aproveitando a noite, cuja resposta é um óbvio e uníssono “yeah”.
Abrindo esse bloco com o violão temos a country “I’ve Just Seen a Face”, cujo “lalala” é cantado por todos. “Daora!” responde Paul, elogiando a participação; “great crowd” (‘plateia incrível’). A seguir, ele relembra: “essa é a primeira canção que os Beatles gravaram”, e quem é beatlemaníaco já sabe que se tratava de “In Spite of All the Danger”, gravada em 1958 ainda com o grupo atendendo pelo nome ‘The Quarrymen’, formação anterior à chegada de Ringo Starr, com o pianista John Lowe e o baterista Colin Hanton. Ao final da curta canção, os fãs permanecem ainda com as lanternas dos celulares acesas cantando o “o-o-o-oh” a capella. Escrita na mesma época, mas lançada apenas alguns anos depois, “Love me do” vem na seqüência, e Paul agradece ao produtor George Martin – “o quinto Beatle” – por ter possibilitado o feito. Aqui, o holofote se posiciona sobre Wix, que vem ao centro do palco para executar a marcante gaita presente ao longo da canção. Paul curte o momento e dá até um chutinho no ar ao final, provando que ainda tem muita energia pois estamos apenas na metade do show. Retirando um mandolin, ele afirma que todos irão dançar essa noite, ou seja, “Dance Tonight” seria a próxima, e quando ele diz todos, ele realmente quer dizer todos: Abe, que para essa canção necessita apenas um kit reduzido e tem vários momentos de folga, rouba a cena com seus movimentos de dança que vão desde Macarena até coreografias dos vídeos virais do TikTok.
Após esse momento de descontração, a banda se retira e deixa apenas Paul ao centro do palco, que na verdade consiste em uma plataforma móvel que começa a ser içada. Certamente uma das passagens mais emocionantes do show, o telão da plataforma em tom azul exibe uma animação de um pássaro preto (“Blackbird”), e aquele homem sozinho com seu violão consegue obter a máxima atenção e admiração de cerca de 40 mil pessoas à sua frente, que o acompanham cantando uma música escrita há mais de 50 anos. Essa façanha não emociona apenas os fãs: é possível ver seus olhos vermelhos e marejados enquanto joga beijos para todos. Como se não bastasse, a seguir ele faz uma dedicatória muito especial: “essa música é pro meu mano John”, apontando para o céu, que incrivelmente (para os padrões paulistanos) encontra-se relativamente limpo e com a lua crescente bem visível, e toca “Here Today”, enquanto o vídeo oficial com diversas fotos da dupla passa no telão. Quem não tinha chorado ainda, agora não conseguiu mais segurar. A plataforma móvel retorna à posição inicial e Paul agradece o carinho dos fãs com um peculiar “thank you, brasilianos” enquanto a banda retoma seus postos, pois a homenagem a John ainda não está encerrada: é hora de “Now and Then”, única novidade da turnê, composição incompleta que foi resgatada lá da década de 70 e relançada no final do ano passado, contando com vocais do falecido cantor Restaurados com a ajuda da tecnologia. O belo arranjo com os vocais de apoio de Wix e Brian, dos metais e a guitarra fazendo o melancólico solo de guitarra com slides enriquecem a apresentação e deixam claro que os Beatles são mesmo atemporais. Os fãs da primeira fila seguram cartazes que Paul diz não conseguir ler devido às fortes luzes, então pergunta do que se trata e a câmera foca neles para sanar a dúvida: “all because of you”, a frase do refrão.
Voltando aos ritmos mais animados e dançantes em um bloco de músicas menos conhecidas, o telão acende em tons neons com a capa do álbum “New” para a execução da faixa-título, e o jogo de luzes coloridas permanece para “Lady Madonna” na qual os espectadores são também presenteados com um solo de sax. O clima festivo prossegue com “Jet”, na qual a galera vibra com o “u-u-u-uh” do refrão, e o destaque é para Wix nos sintetizadores, já que Paul assume o teclado. Ao final, Paul puxa uma vocalização de “Oh yeahs” em diferentes tons apenas para brincar com a plateia e anuncia que a próxima canção é do álbum “Sgt. Pepper’s [Lonely Hearts Club Band]”, sem dúvida o mais psicodélico de sua carreira. O telão exibe caleidoscópios durante toda a execução de “Being for the Benefit of Mr. Kite!”.
O bloco seguinte seria carregado de canções icônicas, e para a primeira, vemos Paul recebendo um ukulele, que, de acordo com ele, foi presente do próprio George Harrison; e dedicando a próxima faixa a seu parça, inicia “Something” na versão adaptada para o instrumento, onde a voz do público faz as vezes do lick de guitarra. A partir da segunda estrofe, o ukulele sai de cena e a banda se junta à performance, cabendo a Rusty a responsabilidade de executar o solo gravado pelo falecido beatle. Ao final, Paul faz um agradecimento a George por ter escrito uma canção tão bonita, e pede que todos cantem juntos a próxima faixa, pedido que é acatado pelos fãs pois afinal trata-se de “Ob-La-Di, Ob-La-Da”, cujo refrão não requer exímias habilidades no idioma inglês. Dando continuidade, vem “Band on the run”, onde a voz dele começar a apresentar sinais de cansaço, embora isso seja um mero pormenor perto da magnitude do espetáculo. Finalmente chega a canção que nomeia a turnê e o britânico pergunta: “do you want to get back?” (vocês querem voltar?”), ao que todos respondem que sim, e complementa “me too” (“eu também”), sendo ovacionado. Antes de entregar o baixo ao seu assistente de palco ao fim da canção, ameaça jogá-lo em direção à plateia, rindo – fica nítido o quão genuíno é o prazer desse senhor em fazer o que faz, contrariando os que o criticam por continuar fazendo shows quando supostamente deveria estar aposentado. Dirige-se novamente ao piano e nos traz mais uma emocionante faixa, “Let it Be”, fazendo todos acenderem as lanternas dos celulares. Mais uma vez o músico agradece aos fãs e, mudando completamente a vibe, holofotes vermelhos se acendem como se fossem sinais de alerta; inicia-se a introdução lenta e melódica de “Live and Let Die”, que vai crescendo e atinge o clímax com uma explosão de fogos coloridos, levando os fãs a pularem e gritarem. Mais uma explosão estrondosa ao final da faixa faz Paul gesticular que não está ouvindo nada, e portanto, pede que gritem mais forte para que ele possa ouvir se ainda estamos presentes. Assim que a fumaça dissipa, e para encerrar o set, vem mais uma daquelas experiências que fazem a vida valer a pena: fazer parte da multidão que, com luzes de celulares ou isqueiros acesas, canta o “nananana” de “Hey Jude” incansavelmente, ora em uníssono, ora obedecendo aos comandos de Paul – só os manos, ou só as minas. É de arrepiar. Aos poucos, Paul vai cumprimentando seus colegas de palco, e então todos se juntam e fazem uma reverência à plateia, se retirando logo em seguida.
Já seria mais do que satisfatório se esse fosse o encerramento, mas quem o conhece sabe que ainda desfrutaríamos de mais algumas músicas, e assim, após alguns minutos de descanso, os músicos retornam ao palco, empunhando 3 bandeiras: a do Brasil, a do Reino Unido e a do arco-íris, que representa a comunidade LGBTQIA+, arrancando aplausos. Um assistente vem recolher as bandeiras e outro vem trazer a guitarra colorida novamente para Paul, e antes de entregá-la, interage com a plateia, que o aplaude também. Mais um momento de homenagem a John, dessa vez com “I’ve Got a Feeling“, na qual o telão exibe o trecho cantado por ele, como se fosse um dueto virtual. “I’m glad I’ve got to sing with you again” (“fico feliz em poder cantar contigo novamente), comenta Paul ao fim da canção. A seguir, ele pergunta se há aniversariantes do dia na plateia, deseja um feliz aniversário a eles, e também aos que fazem em qualquer outro dia do ano, com a carismática “Birthday”. Propícia para o término que se aproxima, vem “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, com seu versos que enaltecem o público e dizem que a banda gostaria de poder levá-los pra casa. Como não poderia deixar de ser, uma das melhores músicas foi guardada para o final – “Helter Skelter”, considerada por muitos como uma precursora do heavy metal, com suas guitarras distorcidas e vocais ‘rasgados’, certamente muito fora do convencional da época. Após a enérgica performance, o músico diz que é hora de ir embora, mas é contrariado pelo público, que grita “Não!” e, com uma cara de quem diz “ok então” ele diz que fica mais um pouco. Apresenta sua fantástica banda e faz os agradecimentos à melhor equipe no planeta, que faz o show ocorrer tão perfeitamente, citando Pablo, na mesa de som, Steve e Roy na iluminação e Bonnie nos telões, mas acima de tudo, agradece aos fãs, sem os quais, nada disso seria realmente possível.
Para o real encerramento, temos a já conhecida trinca da bela “Golden Slumbers”, a groovada “Carry That Weight” – com direto a solo de bateria e duelos de guitarras – e a emblemática “The End” com seu verso praticamente único, mas suficiente para simbolizar tanta coisa, que não à toa vira tatuagem na pele de muita gente: “…and in the end, the love you take is equal to the love you make”. Assim que a canção acaba, os músicos se dão as mãos e, todos juntos, dão um pulinho no ar; Paul se despede com um “Até a próxima!” e uma explosão de papel picado sinaliza que agora sim, é hora de ir pra casa – carregando eternamente na memória e no coração uma noite inesquecível protagonizada por uma lenda vivíssima, que em pleno Dia dos Professores, dá uma verdadeira aula de performance, musicalidade e humildade – e pra quem não pôde comparecer ou precisa de complemento, a aula de reforço vem já no dia seguinte. Haja energia! Paul achou a fonte da juventude e não contou pra ninguém, mas esperamos que ela seja infinita.
Foto: Marcos Hermes
Leitura boa!!!! Texto bem detalhado, valeu!!!!
Dani é foda… Que resenha top. 💜