Kiko Loureiro entrega show para amantes da guitarra e saudosistas do “antigo Angra” em SP
Texto: Dani Kiedis
Fotos: Eddie Junior
Um dos poucos guitarristas que atingiram o patamar de serem reconhecidos pelo nome próprio, não necessariamente estando atrelado a uma banda, o também compositor, mentor, produtor e multi-instrumentista Kiko Loureiro, em seus 35 anos de carreira, conta com 5 álbuns solo que são influência para muitos entusiastas do instrumento ao redor do mundo. Desde o ano passado, quando anunciou sua um tanto quanto polêmica saída da gigante norteamericana do thrash metal Megadeth – alegando que precisava diminuir o ritmo de turnês para se dedicar mais à familia -, muito se especulou sobre seus próximos passos, inclusive uma possível volta ao Angra, banda que o consagrou; mas de fato, o músico desacelerou e anunciou apenas alguns eventos para 2024, como workshops imersivos de mentoria em Helsinki, na Finlândia (terra-natal de sua esposa e onde estabeleceu residência), uma apresentação no festival Best of Blues&Rock, no Rio de Janeiro, e uma mini turnê com mais 10 cidades pelo país e uma esticadinha até Santiago, no Chile.
São Paulo foi a penúltima cidade a recebê-lo e a apresentação ocorreu no último sábado, 10 de agosto, no Tokyo Marine Hall, casa que, nas palavras dele, tem um significado muito especial por já ter sediado tantas passagens suas, mas pela primeira vez trouxe seu nome como artista solo estampado nos telões. Apesar de não estar lotada, os ingressos para o setor de ‘pista premium’ estavam esgotados. Dois outros guitarristas de destaque na cena nacional ficaram responsáveis por esquentar os motores do público. Às 20h entra o curitibano Luiz Toffoli, acompanhado por Cassio Marcos (vocal, ALCHIMIST), Leo Carvalho (teclado), Marcos Janowitz (baixo) e Pedro Tinello (bateria). A banda, que também já vinha fazendo abertura de alguns shows do Angra, apresenta 4 faixas do álbum “Enigma Garden”, lançado no ano passado, uma faixa do futuro álbum e um cover de Dream Theater, que é nitidamente uma forte influência, junto ao Symphony X, Fates Warning e outras do progressivo moderno. A alta competência de todos os integrantes vem aliada a uma boa energia em palco e portanto, o público aplaude entusiasmado e o grupo mais uma vez agradece imensamente a receptividade dos paulistanos.
Já por volta das 21h chega o carioca Gustavo Di Pádua (ex-ALMAH, ex-AQUARIA, ex-GLORY OPERA), acompanhado por Marcus Filipe (guitarra – KEYSTONE), Thiago Fernandes (baixo) e Gabriel Triani (bateria). Nos últimos anos, o guitarrista, que também é cantor e produtor, esteve mais focado em projetos de samba e rock nacional com letras em português, então para essa apresentação optou por revisitar o álbum instrumental de 2008, “The Stairs”, que une virtuosidade a belas e cativantes melodias; adicionou também covers guitarrísticos de grandes clássicos do rock, que fazem parte de seu álbum de tributos lançado no ano passado (“Rock in Quinta”), como Iron Maiden e Black Sabbath, que sempre empolgam o público. Com um largo sorriso no rosto, o músico agradece a presença de todos e diz que está muito feliz em anunciar que em breve sairá um novo álbum, “Elephant”, do qual selecionou duas faixas para essa noite. A banda tem um entrosamento incrível e não falta espaço para que Marcus também possa brilhar em alguns solos. Ao término, a plateia aplaude a impressionante exibição e, no momento da foto final, muitos riem da camiseta de Gabriel onde se podia ler “Not Dave Grohl” – de fato, o músico lembra bastante o vocalista do Foo Fighters em aparência.
Às 22h então, cessa a música ambiente e o palco se acende para a atração principal. A primeira surpresa, que talvez tenha decepcionado alguns dos presentes, foi a ausência de Felipe Andreoli e Bruno Valverde, como originalmente anunciado, já que esses estavam cumprindo agenda com o Angra. A cozinha ficou então a cargo de Thiago Baumgarten (AUROCONTROL) no baixo e do jovem Luigi Paraventi (COMMAND6) nas baquetas. Ambos já haviam tocado com Kiko no Best of Blues&Rock, então não deve ter sido um problema passar o repertório dessa noite, que começou com “Overflow”, de seu trabalho mais recente, “Open Source” (2020). Kiko exibe sua boa forma e energia, correndo de um lado ao outro do palco e subindo nos amplificadores. Sem blablablá, já emendam com “Pau-de-Arara”, voltando aos primórdios da carreira solo com o álbum “No Gravity” (2005).
Mudando totalmente de vibe, entra a excelente e suingada “Reflective”, única faixa do álbum ‘Sounds of Innocence’ (2012) presente no set. Antes de anunciar a faixa seguinte, a emblemática “No Gravity”, Kiko sempre gosta de comentar sobre como aquela época foi um período de incertezas para ele, que ouviu diversas opiniões contrárias de profissionais da música dizendo que não iria “dar em nada” lançar um álbum solo de guitarra, que aquilo estava demodê e etc, mas que ele resolveu seguir seu coração, e bem, como nota-se, deu muito certo, obrigado. Sem dúvida é uma de suas mais belas e memoráveis composições. Dando continuidade, mais uma faixa que une muito bem melodia e técnica, “Vital Signs”, onde a presença de Luiz Rodrigues na guitarra base também é bastante marcante. Kiko passeia pelo pit entre o palco e a pista, de maneira que os fãs na primeira fila possam testemunhar bem de perto a execução de cada nota e até mesmo tocá-lo – quem sabe um pouquinho de talento é transmitido via toque, não custa tentar.
A seguir vem um dos momentos mais legais do show, um medley de canções de várias fases do Angra, que levou o público ao delírio, acompanhando com palmas e “ô-ô-ôs” sempre que possível: Carry On / Spread Your Fire / Nova Era / Morning Star / Evil Warning / Speed – essa última sendo uma escolha interessante, pois apesar do riff marcante, durante muito tempo foi quase ‘lado B’; oriunda do álbum “Fireworks”, que não foi um sucesso comercial à época de seu lançamento (1998), acabou sendo ofuscada por outras canções do disco. Para que o baterista possa retomar o fôlego após a sequência de pedradas, Kiko volta com “Du Monde”, faixa mais cadenciada, que vai crescendo aos poucos. O guitarrista frisa ainda que por ter sido lançado durante a pandemia de COVID-19, não houve tantos shows de divulgação do álbum ‘Open Source’ quanto ele gostaria, mas que está feliz com a repercussão e resultados do mesmo.
Questionando à plateia se estão cansados e recebendo uma resposta negativa, é hora então de chamar ao palco o primeiro convidado da noite – Lobão, uma de suas influências. O carioca sexagenário adentra o palco com seu look meio hippie, sua guitarra semi-acústica de 12 cordas e seu jeitão peculiar, e se dirige à extremidade esquerda do palco, para a execução de sua autoral “Mais uma vez”, do álbum “A vida é doce” (1999). A faixa, arrastada e desconhecida pela maioria, deu uma amornada no público, embora o dueto inusitado da base distorcida de Lobão com as alavancadas muito bem inseridas de Kiko tenha ficado interessante. Em dado momento, o microfone do cantor ameaça cair, mas um técnico de palco rapidamente o ampara e corrige o problema. Ao final da performance, os músicos se abraçam e é notável o sentimento de satisfação e a gratidão de Kiko pela presença daquele que, de certa forma, moldou parte de seu caráter musical. Lobão se retira com um breve e singelo “Obrigado, rapaziada”. Alguns fãs chegaram a tecer a hipótese de que a faixa escolhida seria uma certa mensagem subliminar sobre a decisão de sair do Megadeth, já que a letra menciona que “às vezes é melhor não insistir, e deixar rolar” – mas isso fica livre à interpretação de cada um.
Coincidentemente ou não, o próximo bloco é dedicado a essa fase da carreira de Kiko, e então um violão é posicionado ao centro do palco para a execução de “Conquer or Die”, do álbum ‘Dystopia’, de 2016, álbum que certamente rendeu uma enorme exposição do guitarrista a um novo nicho e trouxe muitos desafios, afinal, fazer parceria com uma figura controversa na cena, como o Mustaine, e ocupar a vaga que já pertenceu a outros gigantes como Marty Friedman e Al Pitrelli não é tarefa para qualquer um. Esse amadurecimento pode ser percebido na execução da próxima faixa, “Killing Time”, do álbum “The Sick, The Dying… And The Dead!” (2022), onde Kiko assume a posição de frontman e também o vocal, originalmente gravado por Mustaine – esse feito é bem recente na trajetória do músico, mais acostumado com as laterais do palco e fazendo apenas backing vocals pontuais. Já a qualidade técnica de suas habilidades vocais não fica muito distante da de seu ex-parceiro norteamericano, mas é notório o quanto ele se diverte durante essa performance “fora da zona de conforto”, e essa alegria é contagiante.
Na sequência, o guitarrista retoma com a balada “Dreamlike” e começa a olhar para as pessoas mais próximas do palco perguntando quem toca bem. Vários fãs levantam a mão, já sabendo que nesse momento, um(a) sortudo(a) terá a chance de subir ao palco e tocar com seu ídolo. Um rapaz de nome Felipe, apoiado por sua companheira, que confirma que ele atende ao pré-requisito, é então auxiliado a pular as grades e se juntar à banda para uma jam. De fato, o contemplado não decepciona e aproveita ao máximo a oportunidade, sendo ovacionado pela plateia. Enquanto ele retorna à pista e o palco é ajeitado para os próximos momentos, os fãs puxam o coro de “Tesouro”, em referência ao apelido do personagem da série televisiva mexicana ‘Chaves’, amplamente difundida no país e que atravessou gerações. Kiko ri e agradece a alcunha carinhosa, que só podia mesmo ser coisa de brasileiro. Nesse momento, um fã aproveita o ensejo para entregar-lhe uma caricatura feita a mão, onde ele é retratado portando uma guitarra quadrada.
O segundo convidado é então convocado ao palco – o cantor Alirio Netto (ex-SHAMAN, ex-AGE OF ARTEMIS, entre outras), que não poupa elogios ao colega de profissão, amigo, e mais recentemente, aluno. Com o violão novamente em foco, após uma breve introdução, Kiko inicia o inconfundível riff de “Rebirth”, e todos se emocionam cantando em uníssono esse hino do metal nacional. Alirio interpreta a canção com sua personalidade, sem se prender muito à estética da gravação original de Edu Falaschi, e até mesmo Kiko parece não se preocupar muito em executar o solo à perfeição, deixando algumas notas mais soltas – a precisão foi reservada para a faixa seguinte, a frenética “Dilemma”, contrastando completamente com a balada anterior.
A seguir, Kiko começa a comentar sobre o próximo convidado ser alguém com quem ele não dividia o palco há cerca de 25 anos, e todos já se animaram sabendo que se tratava de ninguém mais, ninguém menos do que Jesus – Luis Mariutti, baixista e ex-parceiro do Angra. Para relembrar os velhos tempos, nada melhor do que uma faixa da época, “Nothing to Say”, com Alírio de volta aos vocais – sofrendo um pouco para alcançar os famigerados agudos limpos do maestro André Mattos -, e diversos momentos de duetos entre os músicos, que fizeram os fãs gritarem e baterem palmas, celebrando esse reencontro. Após breve abraço, Luis se retira, e na sequência, Kiko retoma com a agitada “Enfermo”. Já chegando ao final do show, é hora de chamar o último convidado: Ron “Bumblefoot” Thal, guitarrista e produtor com passagem em diversas bandas, como GUNS ‘N’ ROSES e SONS OF APOLLO, conhecido por ser “gente boa” e topar praticamente qualquer rolê. Com a sua famosa guitarra double-neck, o músico chega para tocar uma versão estendida de “Escaping”, que talvez tenha ficado um pouco maçante e repetitiva, mas que sem dúvida demonstra a dedicação do norteamericano em ensaiá-la muito bem. Kiko se mostra muito feliz e honrado com a parceria, e ambos concluem a performance com um aperto de mãos.
O encerramento não poderia deixar de ser um número com todos os participantes da noite, e assim, com todos em palco, Luigi puxa a entrada de “Stormbringer”, do Deep Purple (banda que também fez parte da formação musical de Kiko), na qual ele novamente assume os vocais. No entanto, a jam improvisada acaba ficando um bocado bagunçada: Luis fica lá atrás sem destaque algum, e com 4 guitarristas presentes, em vários momentos, um olhava pro outro como quem diz “e aí, quem vai?”, sendo Lobão claramente o mais deslocado, por fugir do estilo virtuoso dos colegas. Após 9 minutos, a jam chega ao fim, e os músicos vêm à frente do palco para agradecer, jogar palhetas/baquetas e registrar as últimas imagens junto aos fãs, que já percebem que aquele é de fato o gran finale e não haverá mais nenhum bis; portanto, nem insistem, possivelmente já vencidos pelo cansaço também.
Apesar do marketing da turnê ter garantido uma viagem por toda a carreira, ficaram de fora os álbuns de sonoridade mais abrasileirada do músico: ‘Universo Inverso’ (2006), do qual fez falta “Feijão de Corda”, com suas influências de baião, e ‘Fullblast’ (2009), do qual poderiam ter figurado a intensa “Outrageous”, ou até mesmo o curto e belo número solo de violão “As it is, infinite”, que teria encerrado magistralmente a noite após tanta fritação.