Steve Hackett honra legado do Genesis em espetáculo emocional e irretocável no Rio de Janeiro

Existe um famoso ditado que mostra que o tempo é o senhor da razão. Isto pode ser aplicado em muitas situações, especificamente na trajetória de uma das bandas mais lendárias da história do rock: o Genesis. Dos cinco integrantes de sua formação clássica (perdurada de 1971 à 1975), o guitarrista Steve Hackett sempre foi considerado o “patinho feio” do line-up no que diz respeito a sucesso comercial e relevância popular. Pela sua carreira solo ter se enveredado a linha mais prog, o músico nunca conseguiu ser um sucesso estrondoso como seus colegas de banda Peter Gabriel, Phil Collins e Mike Rutherford – este último em sua banda Mike & The Mechanics. Os hits não vieram, claro, mas o tempo soube mostrar como de todos os integrantes, Steve foi o que quase ironicamente, soube ser parte fundamental do legado do conjunto nos dias de hoje.

Isto ficou evidente, sobretudo, em suas turnês recentes, onde o músico resgatou o repertório antigo do Genesis. O resgate não se limitou a apenas algumas faixas (algo que Steve fazia anteriormente, antes do século 21), mas sim a se dedicar a apresentar vasto setlist – e em determinados casos – discos inteiros do grupo britânico em seus shows, algo que os outros três membros citados nunca fizeram. Isto ficou mais evidente em excursões recentes feitas tocando na íntegra os álbuns “Selling England By The Pound” (1973), o ao vivo “Seconds Out” (1977) e atualmente também “Foxtrot” (1972). O segundo dos três citados trabalhos em específico foi o ponto chave da nova turnê de Steve pela América do Sul, que passa pelo Brasil neste momento. As apresentações, feitas com a banda Genetics como seu conjunto de apoio, se iniciaram nesta sexta-feira (18), no Rio de Janeiro. Justamente esse show que o Confere Rock foi cobrir.

A atuação de Steve com a banda argentina, formada por Tomás Price (vocais e flauta), Leo Fernandéz (guitarras), Claudio Lafalce (baixo, segunda guitarra), Horacio Pozzo (teclados), Daniel Rawsi (bateria e percussão) e Jorge Araujo (segunda bateria), foi notória ao longo de toda a noite pela precisão e o respeito aos instrumentais originais do icônico disco de 1977. Os vocais de Price em específico foram pontos muito positivos, complementando e sendo um equilíbrio quase perfeito entre as distintas mas muito pessoais interpretações das faixas originalmente cantadas por Peter Gabriel e Phil Collins no citado álbum ao vivo.

A seção rítmica por sua vez foi um fator ainda mais preciso à performance. As linhas de bateria, sobretudo, foram executadas quase que nota por nota, reproduzindo alguns dos momentos mais lendários do espetáculo. Em algumas partes inclusive, Rawsi e Araujo, músicos que executaram o instrumento, tomaram para si os grandes destaques, sendo bastante aclamados pela platéia. Isso foi evidente por exemplo nas execuções de “Afterglow” e na segunda parte do épico “The Cinema Show”, esta um dos maiores momentos tour-de-force do espetáculo.

Por fim, as guitarras, claro, foram o maior deleite da noite. Steve Hackett era a grande estrela e fez jus ao seu nome. Praticamente todas as suas linhas envelheceram como vinho, e pode se dizer que o músico soube se atualizar sem perder seu clássico timbre e modo de tocar. Outro fator impressionante foi a maneira como o guitarrista soube readequar suas funções no instrumento até mesmo em músicas ou partes onde a guitarra originalmente não tem tanta função no disco original, como na divertida “Robbery, Assault & Battery”, sendo um claro exemplo disto.

A dinâmica do músico com o outro guitarrista da banda, Leo Fernandéz também foi muito bem arranjada. Fernandéz atuava como um auxiliar de Steve e seu trabalho mais rítmico ajudava a preparar bem o terreno dos belíssimos solos do músico. Em alguns momentos, duetos de solos entre ambos foram feitos, alguns se encaixando lindamente no espetáculo, como na seção final da clássica suite “Supper’s Ready” e no instrumental de “Fly on a Windshield” no bis.

Os teclados de Pozzo também foram parte disso, funcionando além de executar as icônicas linhas de Tony Banks, como deixa ao “ataque” para Steve em alguns momentos, inclusive mudando sutilmente algumas partes para dar mais ênfase à guitarra. Isto foi importante pois uma das críticas que alguns fãs fizeram ao “Seconds Out” original foram a predominância de teclados sobre partes de guitarra de Steve, algo que pelo menos a mim, escritor desta resenha, parcialmente é uma reclamação justificada.

O setlist do show apesar de ter como estrela o “Seconds Out” não se restringiu ao mesmo. Até mesmo a ordem e algumas dinâmicas do disco original em seu tracklist tiveram (ainda que mínimas) alterações.

A apresentação abriu com três faixas solo da carreira de Hackett. Três clássicos, por sinal: “Ace of Wands”, “Spectral Mornings” e “Shadow of The Hierophant”. Nessa abertura, já podíamos ver como o trabalho do guitarrista era algo de chamar atenção até mesmo a aqueles que pouco sabiam de seu repertório como solista. Todas as canções desta primeira parte do concerto foram muitíssimo bem recebidas pela plateia, especialmente “Hierophant”, que em seu solo final chegou inclusive a arrancar comentários de “gênio” entre os pagantes do evento.

Depois dessa bela e contemplativa abertura, vinha o grande momento do espetáculo: a execução de “Seconds Out”. Com a apoteótica abertura de “Squonk”, tocada com um peso (especialmente na seção rítmica) tão grande quanto sua versão original, a performance do disco fluiu de maneira perfeita. A belíssima balada “The Carpet Crawlers”, cantada por boa parte da plateia e recheada de belíssimos solos de Steve, veio em seguida em um dos momentos mais bonitos do espetáculo. A experimental e divertida “Robbery, Assault & Battery” trouxe um destaque maior para a banda, especialmente para o tecladista Horacio Pozzo, que executou (ainda que com minúsculos erros no início, mas que logo foram corrigidos) muito bem algumas das partes de teclado mais difíceis do Genesis.

Dois dos momentos mais emocionantes da noite vieram em seguida: “Afterglow” e “Firth of Fifth”. Cantadas novamente por boa parte do público, as músicas tiveram uma simbiose perfeita entre Steve e o Genetics. Sobretudo em “Firth”, onde o trabalho de Pozzo, reproduzindo as perfeitas linhas de piano de Tony Banks, e de Price nos vocais e flauta, formaram um instrumental quase idêntico a gravação original de estúdio. O solo de Steve nesta última foi talvez o momento “guitarristíco” mais celebrado da noite. Com razão, visto que é um dos solos, se não o solo, mais belo da história do rock progressivo.

O clássico “I Know What I Like” trouxe novamente a excepcional interação do público com palmas e cantos, com Steve os guiando em um momento discontraido e deliciosamente divertido do espetáculo. Seus solos aqui foram divididos com Leo Fernández, que trouxe uma base funky para música. A seção final do épico “The Musical Box” veio em seguida. Embora fosse parte do trabalho original (que vinha em um medley com “The Lamb Lies Down on Broadway”, aqui remanejada para o bis), vai o primeiro ponto de crítica do show, talvez o único. Já que a canção anterior foi reposicionada, Steve poderia ter tocado o épico inteiro, algo que abrilhantará até a performance. Inclusive foi um momento de desalinho com outros “rearranjos do show”, como em “The Cinema Show”, que trouxe o postlude “Aisle of Plenty” (não presente no LP ao vivo original) como licença poética. Ainda que tenha sido claro, uma performance dramaticamente apoteótica, faltou este tato na hora da montagem do repertório.

Em seguida com os clássicos “Supper’s Ready” e “The Cinema Show”, o espetáculo ganhou talvez seus momentos mais bonitos de toda a noite. Além de serem muito cantadas pela plateia (notória por ser mais contemplativa, ao menos no show de ontem), as músicas tinham aspectos de luzes diferenciados das outras faixas. A jornada lírica religiosa de “Supper” em determinados momentos inclusive, foi narrada visualmente pelo ótimo jogo de luzes, com o contraste do uso do vermelho e de tons mais claros, para representar a luta do mal contra o bem. “The Cinema Show” por sua vez também teve o jogo de luzes perfeito, mas ressaltado pelo excepcional instrumental rítmico e dos teclados de Pozzo. O dueto de bateria de Rawsi e Araujo perto do fim da faixa foi de arrepiar.

Para encerrar o set, veio o medley infalível de “Dance on a Volcano” e “Los Endos”, ligadas por um interlúdio intenso (mas curto) de bateria dos dois. Steve aqui tomou novamente o protagonismo do show (algo levemente deixado de lado em “Cinema”), com linhas muito fluidas de guitarras e que em alguns momentos se arriscaram em trechos inéditos. Toda a banda também fez um trabalho instrumental impecável, especialmente em “Los Endos”, onde a dinâmica de Steve com os teclados e as duas baterias foi algo a par dos shows de 1977.

Com uma leve pausa e a chegada do bis, veio mais um “medley” para encerrar o espetáculo. Desta vez uma trinca que originalmente foi uma “licença poética” por parte da banda em comparação ao disco original: “The Lamb Lies Down on Broadway”, “Fly on a Windshield” e “Broadway Melody of 1974”. Apenas a primeira constava no disco ao vivo homenageado, o que fez claro, um plus a performance. Nesta parte final da noite ficou muito claro o resumo de toda a performance: um som complexo, mas ao mesmo tempo muito envolvente, sedutor e único que é o repertório do Genesis e seu instrumental. Começando com a quase “prog-pop” “The Lamb”, cantada pela contemplativa plateia, e passando pelas etérea e ao mesmo tempo pesadas e poéticas “Fly on a Windshield” e “Broadway Melody”, este finale mostrou muito bem o que foi a performance: ousada, emocionante e claro, executada com precisão quase cirúrgica – e que mostrou que Steve, junto aos competentíssimos Genetics ou qualquer outra banda, sabe honrar de maneira perfeita o espírito e a essência do Genesis como ninguém. Algo que sem dúvida é o que todos nós fãs da banda precisamos.

Setlist:

“Ace of Wands”
“Spectral Mornings”
“Shadow of the Hierophant” (seção instrumental)
“Squonk”
“The Carpet Crawlers”
“Robbery, Assault & Battery”
“Afterglow”
“Firth of Fifth”
“I Know What I Like” (com trecho de “Stagnation”)
“The Musical Box” (última seção)
“Supper’s Ready”
“The Cinema Show”
“Dance on a Volcano” / “Los Endos”

Bis:
“The Lamb Lies Down On Broadway”
“Fly on a Windshield”
“Broadway Melody of 1974”

Banda:
Steve Hackett – guitarras, violões e backing vocals
Tomás Price – vocais, pandeiro e flauta
Leo Fernandéz – guitarras
Claudio Lafalce – baixo, segunda guitarra e violão Horacio Pozzo – teclados e violão
Daniel Rawsi – bateria e percussão
Jorge Araujo – bateria e percussão

Kelvyn Araujo

Formado em Jornalismo pela Universidade Do Grande Rio. Com experiência jornalística em rádio, audiovisual e redes sociais de anos, é apaixonado por música e todas as suas vertentes. Atual editor-chefe e host do canal/página Progland, sobre rock progressivo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *