Mesclando clássicos e lançamentos, Deep Purple faz apresentação impecável em SP
Texto:Daniela Reigas
O Deep Purple é uma daquelas bandas jurássicas que dispensa introdução. Simplesmente um dos pilares do rock, fundada ainda nos anos 60, com uma história cheia de reviravoltas e saídas de membros que também vieram a ter carreiras-solo muito bem sucedidas, os ingleses retornam ao Brasil para comemoração de nada mais, nada menos do que 50 anos do icônico álbum Machine Head, que traz o grande clássico ‘Smoke on The Water’. Fora a participação no festival Rock in Rio, a apresentação em SP, no Espaço Unimed, na sexta-feira 13, foi a única oportunidade de prestigiar esse acontecimento, e o resultado, portanto, foi de ingressos praticamente esgotados e muita fila para adentrar o recinto.
Com relação a setlist, para quem acompanha o grupo, era de se esperar que não haveria surpresas – a essa altura da carreira, a banda prefere a segurança de um setlist único e bem consolidado para toda a turnê. Para além da celebração de Machine Head, é importante lembrar que a banda não vive só de passado e lançou um excelente álbum há apenas 3 meses, então as faixas de “=1” seriam muito bem mescladas com os clássicos.
Por volta das 21:50h, acende-se o telão com uma animação introdutória com a identidade visual do novo album, deixando os fãs que gostam de captar a entrada dos músicos já com celulares a postos para filmar; no entanto, havia um burburinho de que muita gente ainda não havia conseguido validar a entrada na casa, e portanto, segurou-se o início do espetáculo até as 22:10h, quando as lendas vivas Ian Paice (bateria), Roger Glover (baixo), Don Airey (teclado) e o recém integrante Simon McBride (guitarra) entram em cena e iniciam as primeiras notas de nada mais nada menos do que “Highway Star” – uma das mais icônicas da carreira – com sua introdução épica que vai crescendo, assim como as expectativas de ver o rosto do último membro que faltava: Ian Gillan (vocal). Apesar de não ter dado o grito marcante que consta na gravação original, e do volume de voz um tanto quanto baixo nas primeiras estrofes, a inconfundível voz do quase octogenário logo pode ser apreciada em sua totalidade, e é acompanhada em uníssono pelos fãs durante o refrão. Durante a performance, o telão mescla animações de um carro em alta velocidade com cortes dos músicos em destaque, como por exemplo na dobradinha de guitarra & teclado.
Na sequência, a excelente e também enérgica “A bit on the side”, do trabalho mais recente, é muito bem recebida pelo público, fazendo todo mundo dançar. Vemos um Gillan extremamente sorridente e todos os músicos muito bem entrosados. Sem delongas, pois o setlist da noite seria extenso, já emendam com duas pauladas das antigueiras, na ordem inversa à que aparecem no álbum “In Rock” (1970): primeiro, “Hard Lovin’ Man”, que conta com uma cozinha impecável de Paice e Glover, assim como um solo de teclado de Don Airey cheio de efeitos especiais que é uma verdadeira viagem. Gillan, novamente, sabe de sua atual limitação e não abusa muito de agudos, mas entrega ótima performance nos médios. Em seguida, “Into the Fire”, cujo refrão foi bradado por todos os fãs, o que talvez encorajou Gillan a ousar um pouco mais nos tons altos. Ao final desta faixa, finalmente somos saudados por um “Boa noite Sao Paulo, obrigado” do frontman britânico, que apresenta e pede aplausos para o guitarrista Simon, que apesar de ter se juntado à banda há apenas 2 anos, inicialmente em substituição temporária a Steve Morse, tem uma carreira muito bem consolidada e já havia trabalhado com Don em seu projeto solo. O músico, que se tornou integrante fixo e gravou o álbum mais recente junto aos veteranos, não é desconhecido do público brasileiro, visto que a banda já havia vindo com ele para o festival Monsters of Rock no ano passado, edição na qual ele foi eleito o melhor guitarrista.
Nesse momento, os demais músicos se retiram e Simon tem todos os holofotes para si num solo que emenda perfeitamente com a introdução melancólica de ‘Uncommon Man’, do álbum “Now What?!”, de 2013. Gillan demonstra ter descansado um pouco a voz após esse intervalo e volta muito bem para prestar sua homenagem ao falecido tecladista e membro fundador Jon Lord, apontando para o céu ao final da canção. Trazendo mais uma do novo álbum, Gillan começa a contar uma história muito louca sobre uma casa que pegou fogo devido a um curto-circuito e à alta quantidade de bebidas alcóolicas no recinto, enquanto o dono, um camarada preguiçoso, estava capotado na cama após uma noite de bebedeira: basicamente, a narrativa (autobiográfica?) por trás de ‘Lazy Sod’, cujo clipe era exibido no telão durante a performance. Continuando nessa vibe, Don executa um breve solo em seus teclados e sintetizadores, enquanto degusta uma taça de vinho e brinda à plateia. Ele chega a puxar as notas do primeiro acorde de “Perfect Strangers” apenas para atiçar os fãs – a canção acabou não fazendo parte do setlist da noite. Em seu lugar, se inicia “Lazy”, onde Gillan substitui os gritos mais agudos e rasgados por ‘risadas debochadas’ e também toca gaita, sendo aplaudido pelos fãs. Grato pelo carinho, ele comenta que a noite está com uma vibe excelente.
Dando continuidade e chegando na metade do show, temos um momento muito emocionante, com uma canção que certamente atravessa gerações e faz muito marmanjo chorar: “When a blind man cries” – durante essa faixa, o telão foca em zoom no rosto do cantor, para que todos possam apreciar a tocante performance em detalhes. Simon também encanta a plateia executando muito bem o belíssimo solo de autoria de Ritchie Blackmore. Intercalando mais um som novo, vem Gillan com outra história doida, agora sobre um homem que queria roubar um banco, e assim se inicia “Portable Door”, cujo clipe também era exibido nos telões. Ao final, o cantor agradece a receptividade para com as novas músicas e diz que isso é realmente muito importante para eles. Na sequência, vem mais uma história doida contada tão rapidamente que quase não dá pra entender o que ele diz a não ser que se trata de um relato sobre o encontro com uma mulher misteriosa de nome “Anya” – o telão exibe uma animação com a silhueta de uma bela dançarina e a canção é iniciada (infelizmente pulando a introdução original de violão flamenco) com o riff de teclado, que é acompanhado com “oh-oh-ohs” dos fãs.
Aproveitando a atenção dos fãs ao teclado, é momento de todos os músicos exceto Don se retirarem, e aqui temos uma excelente apresentação solo onde ele executa trechos de músicas simbólicas: os fãs são presenteados com a introdução emblemática de “Mr. Crowley”, de Ozzy Osbourne – composta por ele em 1980 quando ambos músicos estavam gravando no mesmo estúdio – e hits mundialmente conhecidos da MPB, como “Chega de Saudade” (Tom Jobim), “Aquarela do Brasil” (Gal Costa) e até mesmo o hino nacional, que é cantado por parte do público em postura formal e mão sobre o coração, como manda o figurino. Sem dúvida, uma demonstração incrível de respeito pelo público brasileiro. O restante dos integrantes vai voltando a postos para mandarem a suingada “Bleeding Obvious”, seguida da clássica “Space Truckin’”, que fez praticamente toda a pista pular e bater cabeça. Aproximando-se o final do set, chega a hora do riff de guitarra mais replicado não só na carreira da banda como na história do rock: “Smoke on the Water”, acompanhada por um grande coro da plateia durante o refrão, incentivado por Gillan dizendo “I can’t hear you!” (Eu não consigo ouvi-los!) para que cantem ainda mais alto. Ovacionados, os músicos se retiram brevemente de seus postos para se hidratar e Simon é visto distribuindo algumas palhetas para os fãs mais próximos ao palco.
Para o bis, é impossível não destacar a incrível resistência de Ian Paice, que, no auge de seus 76 anos, comanda as baquetas com a precisão de um metrônomo, mas a empolgação de um rockstar, como deve ser. Os fãs podem testemunhar as habilidades dele e dos colegas de palco, contando com um longo duelo entre o teclado e a guitarra, em uma jam/versão extendida de “Hush”, cover de Joe South que a banda executa desde sua origem em 1968, ainda com o vocalista Rod Evans. Sem dúvida, poder cantar o “na na na na” do refrão junto à banda que o consagrou continua sendo uma experiência inesquecível para quem pode prestigiar. O show de luzes da casa contribuiu para que a performance fosse realmente contagiante. E mesmo após essa passagem que exigia bastante fisicamente de todos, ainda havia fôlego para o encerramento com mais uma clássica: “Black Night”, cujo riff também foi cantarolado pelos fãs. Quem tem um bom ouvido conseguiu perceber que em algum momento, a banda parece ter se descompassado, mas foi algo muito breve e que em nada tirou o mérito e nem afetou a energia de ninguém, tanto músicos como fãs continuaram curtindo aqueles últimos segundos como crianças num parque de diversões prestes a fechar. Uma pausa durante a canção é feita para interagir com a plateia, que bate palmas e vocaliza os “oh-oh-ohs” junto a Gillan – genuinamente feliz, o músico exclama “Unbelievable!” (Inacreditável) e se despede com a mensagem “You are number one! Take care, we love you!” (Vocês são número 1, se cuidem, nós amamos vocês”).
Quem perdeu esse show ainda pode ter esperanças de ver seus ídolos num futuro não muito distante, pois a banda já declarou que não pretende se aposentar tão cedo; mas como ninguém sabe o dia de amanhã, a essa altura do campeonato certamente não dá pra arriscar postergar as chances de apreciar essa verdadeira aula de rock ‘n’ roll com os mestres que até hoje são responsáveis diretos por influenciar um sem-número de jovens a montarem suas próprias bandas, provando que essa inspiração realmente é o elixir da jovialidade.
Setlist:
Highway Star
A Bit on the Side
Hard Lovin’ Man
Into the Fire
(Solo de Guitarra)
Uncommon Man
Lazy Sod
(Solo curto de teclado)
Lazy
When a Blind Man Cries
Portable Door
Anya
(Solo longo de teclado com passagens de canções brasileiras)
Bleeding Obvious
Space Truckin’
Smoke on the Water
Bis:
Hush (cover de Joe South)
Black Night
Fotos: Ricardo Matsukawa / Mercury Concerts
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